Certa vez, estava olhando a timeline do Twitter (ou X) e acabou passando um tweet do Journal du Japon a respeito dos principais destaques de lançamento de mangás do outono (é outono na Europa enquanto que aqui é primavera). Entrei no post, dei uma olhada na lista e bem sem querer, acabei esbarrando em uma entrevista do final de 2019 (em 12 de novembro de 2019, especificamente) com o Bruno Pham, gerente editorial da Akata.
Já comentei por diversas vezes que gosto muito dessa editora pela filosofia deles de valorização de autorAs e principalmente do Shoujosei. Salvei para lê-la em algum momento oportuno e para a minha surpresa, o tom da entrevista me trouxe reflexões não só sobre o Shoujo, como aspectos sociais também. Como o assunto acaba conversando com a realidade do mercado brasileiro de mangás, resolvi traduzir essa entrevista.
Pensei inicialmente em traduzir e ir postando no Twitter como sempre faço, mas decidi por deixar ela registrada no blog. Vale dizer que tudo que estiver entre colchetes ([]) ao longo da entrevista, são adições minhas, normalmente para melhorar o entendimento da frase ou para dizer títulos originais, já que boa parte dos mencionados na entrevista não foram lançados no Brasil. As legendas das imagens também foram escritas por mim ^^.
A entrevista na íntegra pode ser lida no site do Journal du Japon, através deste link. Segue a tradução:
Todo mundo pensa que sabe o que é o mangá Shoujo, do que fala e, sobretudo, à quem fala. Certo ou errado. Mas a diferença do ponto de vista entre França e Japão sobre o que é um Shoujo entre as editoras e os jornalistas [a imprensa especializada de lá] sempre tornou mais complexa a compreensão deste setor do mangá, seja do ponto de vista do conteúdo, seja do potencial no que diz respeito ao grande público. É por isso que o Journal du Japon foi ao encontro de um editor que trabalha neste setor há anos, Bruno Pham, gerente editorial da editora Akata, que sempre trabalhou e defendeu por uma melhor compreensão do mangá Shoujo (e do mangá em geral, aliás).
Nós fomos ao seu encontro para falar de todas as temáticas que tocam o mangá Shoujo, mesmo que às vezes isso signifique nos colocarmos no lugar de principiante ou do leitor ingênuo, afim de confrontar as verdades e inverdades associadas ao Shoujo mangá, à aqueles que os leem ou que os publicam na França e no Japão. Uma entrevista garantida, sem ironias!
Afinal, o que é Shoujo mangá?
Preâmbulo bibliográfico: Após estudos científicos nos anos 1990-2000, mas imerso no mundo dos fanzines, Bruno Pham entra em 2003 na Akata como responsável técnico do site da editora, antes de se tornar gradualmente um editor com Dominique Véret [fundador da Tonkam e foi um dos fundadores da Akata], com e sem a Delcourt1, em 2013, e como único diretor desde então. Mais informações sobre seu percurso pessoal neste divertido vídeo de Rosalys.
- Bom dia Bruno e obrigado pelo seu seu tempo…
Para começar: o que é um mangá Shoujo e quais são seus códigos [no sentido de características]? (Sim, eu sei, é o básico do básico)
Há algum tempo, eu teria respondido muito simplesmente alguma coisa como: “o shoujo mangá é uma obra, seja qual seu gênero, que foi publicado em uma revista marcada como « de mangá shoujo » por sua editora de origem”. E então, isso é tudo.
Mas nos últimos anos, com o desenvolvimento das plataformas de pré-publicação digital, se tornou um pouco mais complicado. Esta definição estrita continua majoritariamente válida, mas, portanto, devem ser observadas as exceções, dado que cada vez mais, certas plataformas de pré-publicação não utilizam voluntariamente os termos habituais. Nesses casos, é preciso esperar para ver em qual(is) coleção(ões) os títulos serão integrados, caso sejam lançados em formato físico, para então tomar uma decisão. E/ou também, consultar os trabalhos anteriores dos mangakas para eventualmente decidir. Houve também, nos últimos tempos, dois ou três casos relativamente novos, como uma série de Keiko Nishi atualmente publicada na Big Comic Original [Seinen], mas que saiu em volume encadernado na coleção Flower Comics [Shoujo/Josei] da editora [Shogakukan]…
É realmente emocionante ver como as coisas evoluem e certas barreiras estão caindo. De qualquer forma, o certo é que “romance” não é automaticamente um Shoujo (e vice-versa).
E para falar “dos códigos”… é tão complicado. Porque rapidamente se torna confinante e existe o risco de fazer generalizações perigosas. No entanto, não podemos negar que há uma verdadeira herança do “shoujo mangá”, que esta categoria editorial tem uma história e um desenvolvimento próprio, e da qual devemos falar. Com uma verdadeira apropriação pelas autoras de um formato narrativo e uma vontade de se expressarem sobre diversos assuntos.
Se eu simplificar ao extremo, eu diria que os mangás shoujo são muitas vezes centrados na evolução dos personagens (da interioridade dos personagens), e não em eventos externos. Mesmo que, inevitavelmente, os eventos externos sejam produzidos, o foco é geralmente no que eles produzem nos personagens e na sua intimidade. Através de, entre outras coisas, a indispensável técnica do monólogo interior. Agora também encontramos isso em muitos mangás Shounen e Seinen. Na minha opinião, esta é uma das grandes contribuições do mangá Shoujo em relação ao restante do editorial.
- Falando de editorial, quem são as boas editoras, ou mesmo as boas revistas de pré-publicação em termos de Shoujo?
Eu não faria generalizações sobre isso. Há bons Shoujos em absolutamente todas as editoras japonesas e na maioria das revistas. E mais, os mangás e revistas são criados por responsáveis editoriais, que são humanos, que mudam, que evoluem, que se movimentam, que vivem, simplesmente, que morrem também… E por isso, se sente muito nas linhas editoriais das revistas.
Em um determinado momento, pode ter uma espécie de época de ouro para uma revista, cuja a linha editorial vai evoluir (porque uma série terminou, ou porque o editor-chefe mudou, etc.). Eu não gosto de cravar coisas na pedra, é justamente isso que provoca caricaturas. E de qualquer maneira, também depende do tipo de histórias que procuramos. Enquanto leitor, percebo que os períodos onde estou sintonizado profundamente com uma revista duram, em geral, de 3 a 4 anos. Eu tenho a tendência de permanecer curioso e até mesmo olhar revistas cujo o trabalho eu não apreciei em alguma época. Depois, se tivermos que falar da importância história, há todo um trabalho de cronologia a se fazer sobre as datas de criação das revistas, as mudanças de ritmo de publicação, etc., etc… Claramente, algumas revistas têm mais história e longevidade que outras. Mas de certa maneira, é um trabalho jornalístico e acadêmico. Se eu, enquanto editor, começo a fazer isso, surgirão questões… Esse é o meu papel? Enfim, da mesma maneira que eu não gosto de confinar caixas, por que reduzir o papel de todos a algo tão estrito? Talvez um dia eu analise isso publicamente. De certa forma, é um pouco o que tentamos fazer com nossa seção « Momento Shoujo » no Youtube.
- Porém, na França [o Shoujo] às vezes é reduzido ao romance do ensino médio: O que você acha? Só por que funciona? E quais são as consequências (se houver) de se prender a este estereótipo?
Só para esclarecer… “é reduzido”, você se refere a quem? Os leitores? As editoras? Os jornalistas [seria a imprensa especializada]? As livrarias? Eu acho que minha resposta não seria exatamente a mesma, em função do ponto de vista que assumimos… Mas, claramente, existe um circulo muito vicioso. E todo mundo, absolutamente todo mundo, é responsável.
O certo é que, antes da chegada dos mangás Shoujo em francês, o universo das HQs, em todos os níveis, era muito masculino. Na nossa sociedade, com a educação que temos, uma história criada por uma mulher é muitas vezes, no inconsciente coletivo, sinônimo de romance. Isso não deve ter ajudado… Eu suponho que, de maneira quase automática, o Shoujo, que geralmente é criado por mulheres, foi assimilado ao “romance”. Estudantes do ensino médio [mulheres], já que de qualquer maneira, o mangá é para crianças. Na verdade, o mangá Shoujo simplesmente sofreu com o sexismo ordinário [comum] da nossa sociedade (dobrado de um cheiro potencial de superioridade cultural).
Mas se olharmos a realidade do que aconteceu, é que se deixarmos de lado Candy2 [Candy Candy], os primeiros Shoujos que foram publicados na França não foram romances colegiais puros e duros. De um lado, os títulos da CLAMP que propunham obras com tendência metafísica/social, ou mesmo títulos como Sailor Moon e Fushigi Yugi tinham uma boa dose de elementos de fantasia.
Para mim, uma mudança gradual começou a ser feita a partir de 2002, que foi um ano dourado para o Shoujo. Com os lançamentos consecutivos de Fruits Basket, Peach Girl e Nana. Como houve um sucesso comercial enorme, os editoras começaram a publicar mangás Shoujo românticos em massa, especialmente os colegiais. Mas não só isso… Ao lado, você via títulos como Banana Fish, Kaguya Hime ou mesmo Basara, que continuaram a ser propostos, mas que foram rejeitados pelas leitoras. Como resultado, pouco a pouco as editoras abandonaram o Shoujo que não fosse romance colegial. Isso foi um circulo vicioso: menos propostas, e quando as editoras assumiam riscos, não somente não eram apoiadas pelos leitores(as), como também pelos jornalistas. Para dar um exemplo concreto, as revistas femininas (feitas por mulheres, para mulheres), na época da chegada massiva de obras adultas em francês como as de Mari Okazaki, Kiriko Nananan, Minami Q-TA… passaram o movimento em completo silêncio! Certos jornalistas nos diziam “Que história é essa de mangás feitos por mulheres, para mulheres? Isso não é criação, é marketing! Nós somos melhores que isso”. Isso mostra o nível de hipocrisia…
Falando em Complément affectif [Suppli], aliás, lembro-me que alguém tinha me dito que ela não se reconhecia na heroína, que hesitava em qual bolsa comprar para combinar com seus sapatos, porque se hesitasse, ela não se importava, ela compraria os dois… Ok, por que não… Mas resumir Complément affectif a “a heroína hesita entre [comprar] duas bolsas”, é realmente triste… Eu poderia contar durante horas exemplos reveladores. E quando você entra em uma espiral negativa como essa, fica muito complicado de sair. É preciso esforços sobre-humanos para mudar a situação, especialmente quando os maiores players do “mercado” parecem continuar a prender o Shoujo dentro deste rótulo restritivo. Em breve eu farei um vídeo sobre isso…
- O que você pessoalmente aprecia no Shoujo, se ele é específico do mangá Shoujo em relação a uma obra ocidental (a BD, por exemplo) ou em relação aos outros segmentos do mangá como o Shounen?
Os personagens e a humanidade que emerge dos mangás Shoujo. Há uma razão pela qual o monólogo interior é tão importante. E não é à toa que esses mesmos monólogos acabam por serem assimilados no Shounen e no Seinen. Mas dentro do mangá Shoujo, geralmente (ou digamos, em um “bom” mangá Shoujo), esses monólogos são intimamente ligados à própria evolução de um capítulo. O monólogo que abre um capítulo pode ecoar até o final dele ou do volume. Uma pergunta feita no começo de um capítulo, de maneira inócua, e a resposta chegará ao longo dos acontecimentos e das reflexões da personagem… Há dentro uma verdadeira genialidade narrativa que, em geral, supõe que o leitor não é um idiota… Como dizer? Digamos que tradicionalmente, um mangá Shoujo demanda do leitor um esforço de análise e/ou de compreensão. Certos monólogos são deliberadamente ambíguos, e deixam uma margem muito ampla de interpretação e, portanto, de sentimentos ao leitor. Eu gosto desse envolvimento que vem junto. Há uma espécie de não passividade na leitura de um mangá Shoujo. Isso estimula o afeto, mas não somente, de uma certa maneira, a inteligência também. Mesmo que isso possa ser feito inconscientemente. Na verdade, está ligado ao que disse antes, sobre o fato da história evoluir através da interioridade da personagem, e não através de seus atos. E por isso, demanda ao mangaka um outro nível de reflexão sobre a encenação [no sentido de como se faz a montagem do mangá]: como expressar o sentimento e a interioridade em imagens. E o não dito também, o subentendido. Em termos de narrativa, não há dúvidas que o mangá Shoujo geralmente supera o Shounen.
De uma maneira global, eu acredito também que o universo do Shoujo é talvez menos monolítico do que o do Shounen. Claro, há sempre exceções, mas nos últimos tempos, eu me pergunto muito sobre certos valores veiculados no Shounen mangá. Há muitas coisas positivas, é uma certeza (a amizade, a defesa dos oprimidos…). Mas esta espécie de sacralização de se superar, da necessidade de nunca desistir, de quase nunca ter o direito de desistir ou de fracassar, pergunto-me se isso não instaura uma espécie de servidão capitalista… É uma sensação, nada específico, mas por dentro, eu acho que há algo bastante desumano, como se os heróis fossem máquinas que nunca devem parar. Enfim, claro, há muitos contraexemplos, e também Shounens românticos… Mas se eu olho o mangá Shoujo, descubro que personagens que expressam mais diversidade, mais humanidade. Com fissuras [creio que como defeitos nos personagens], com histórias mais corais e menos centradas em um único personagem. E também, deve-se admitir: as autoras de Shoujo normalmente têm mais sucesso na descrição de personagens do que o inverso…
No que diz respeito ao quadrinho [BD] franco-belga, ele evoluiu tanto nos últimos anos que não devemos fazer generalizações. Mas sem alguma dúvida, quando eu era criança, o quadrinho havia esquecido completamente a interioridade dos personagens retratados. Tudo era muito exteriorizado, frio em muitas vezes e verbalizado também. Felizmente, a arte em geral está sempre em movimento e com a internacionalização, tem havido trocas de influência muito benéficas entre diferentes artistas.
- Sua história de leitor também é a de leitor de shoujo, se bem me lembro de suas entrevistas ou de nossas discussões. Quais são as obras que marcaram sua vida de leitor e por quê? Vamos lá, vamos nos limitar a um top 5, e sem necessariamente classificá-los, caso contrário não terminaremos!
Atenção, eu nunca li exclusivamente mangás Shoujo, longe disso! Ainda seria assustador ler apenas isso (assim como é assustador que algumas pessoas leiam SÓ Shounen haha!!). E de qualquer forma, eu não li só mangá também. Se me retenho ao mangá, obras como Asatte Dance ou Frères du Japon [Nihon no Kyodai] foram importantes na minha construção como leitor. Mas voltando ao mangá Shoujo… Raaaah um top 5, é tão pouco para falar de uma categoria editorial que tem mais de 40 anos de histórias e que merecem tanto destaque, é uma tortura psicológica me perguntar isso… Um título pode ter sido importante em um momento de sua vida, e a medida que você cresce, você evolui, muda e mesmo guarde uma certa nostalgia, você sabe que não é mais “o melhor título”. Então, ao invés de fazer meu “top 5” pessoal (o que não faria muito sentido e seria completamente artificial e tendencioso), eu prefiro dar um título por década de criação, e que também dará uma representatividade da diversidade do Shoujo.
Para os anos 70: impossível não falar de La Rose de Versailles [Rosa de Versalhes]. Na realidade, quando eu era criança o desenho animado me incomodava muito… Eu era muito jovem, simplesmente. E quando eu redescobri a série no ensino médio, que tapa na cara! Ele é um embaixador perfeito em tantos níveis. (Palavras-chave: Histórico/Drama/Romance)
Para os anos 80: vou lembrar de Please save my earth [Boku no Chikyu o Mamotte]. Com uma trama narrativa que se passa em duas épocas e uma diversidade de personagens, este título tem todas as características de um excelente mangá Shoujo. É um verdadeiro [mangá] inevitável que merece ser redescoberto pelas gerações mais jovens, para compreender a história do mangá Shoujo. (Palavras-chave: Ficção científica/Poesia/Ecologia)
Para os anos 90: em RG Veda, há um certo maneirismo próprio do mangá Shoujo. Com uma verdadeira dramaturgia própria da categoria. E mais, era a época onde a CLAMP não tinha se pervertido à máquina capitalista e onde elas ainda tinham coisas a dizer. (Palavras-chave: Mitologia/Fantasia/Drama)
Para os anos 2000: L’infirmerie après les cours [Houkago Hokenshitsu]… Exatamente quando eu falei de “monólogo que abre um capítulo” e que ganha sentido no final deste ou do volume. Ele vai mais longe ainda: todos os elementos da série fazem sentido graças à sua conclusão. Com o bônus adicional dessa ambiguidade, o que faz com que você nunca saiba em que gênero a história realmente se enquadra. Blefando! (Palavras-chave: Identidade/Cotidiano/Romance)
Para os anos 2010: Ugly Princess [Kengai Princess]. Porque para além da obra, há um encontro entre uma artista e seus leitores, do outro lado do mundo. Natsumi Aida veio à França graças ao sucesso de Switch Girl !!, e foi a constatação que ela teve durante sua vinda que fez ela colocar todo o seu coração, todo o seu ser, em Ugly Princess. Pela primeira vez, a obra é 300% no que parece ser um Shoujo “clássico”. Mas podemos falar sobre o cotidiano e ele o faz bem. Ele tem tudo que eu amo em um Shoujo, personagens humanos e também um olhar real sobre nosso mundo, aliado de uma reflexão sobre o próprio gênero da segunda parte da história. Não estou sendo nada objetivo com Ugly Princess, porque Natsumi Aida se tornou uma amiga e eu sei tudo que ela investiu aqui. Mas raramente um volume chocou tanto quanto o volume 4 de Ugly Princess. A força, a coragem, a resiliência da heroína… Enfim, eu poderia falar por horas. Isso dará a impressão de que estou “exagerando”. Sou criticado por isso, às vezes… Mas, na verdade, estou apenas compartilhando o que vivi e senti em relação a série. Falo mais tempo do que as obras, porque é uma leitura mais recente, então obviamente, a memória está mais “viva”. (Palavras-chave: Romance/Cotidiano/Comédia)
O leitor do mangá Shoujo
- Já que estamos falando do leitor de Shoujo… Costuma-se dizer que meninas leem Shoujo e Shounen, mas que apenas (ou pelo menos a maioria) as meninas leem Shoujo. Discutimos regularmente entre os rapazes nas redes sociais nossas leituras classificadas como Shoujo, porém, acabo me perguntando se essa história é verdadeira, e qual o motivo disso… Sua opinião?
Em primeiro lugar, as redes sociais não são representativas da integralidade dos leitores e parece que elas distorcem nossa visão da realidade, pois todos nos cercamos por pessoas que compartilham dos mesmos valores. De fato, nas redes sociais, temos a tendência de seguir pessoas que “validam” nossa maneira de pensar. Paradoxalmente, estamos portanto, em um “circulo fechado”, enquanto que a Internet deveria nos abrir… No fim, as redes sociais reforçam nossas certezas. Somos todos assim, eu em primeiro lugar. Então, vou supor que sua pergunta vem do fato que… você funciona da mesma maneira que todo mundo, ou seja, em um circulo fechado. Porque honestamente, a resposta é óbvia, tão óbvia… Basta observar um pouco para ver os comentários muito negativos sobre o Shoujo. No YouTube, no Twitter, em todo lugar… Mesmo nos artigos e resenhas, que veiculam tantos clichês… No nosso estande na Japan Expo [Julho de 2019], tem adolescentes que nos olham de longe e dizem “Oh, mas lá eles só fazem Shoujo” e vão embora sem nem perder tempo. E este não é um caso isolado. Quantos jornalistas ainda não se dignam a tentar ler um Shoujo sobre o pretexto de que “não é seu tipo”.
Só para constar, mas é muito significativo… A vinda de Rie Aruga na Japan Expo [de 2019] foi edificante em muitos níveis. Sendo claro, falamos de uma autora de um Shoujo3 que vende muito melhor que muito Seinen e Shounen de baixo custo (em breve, 100.000 mil exemplares vendidos em francês), e cujo o assunto está nas notícias. Quase ninguém apreciou a oportunidade desta vinda. Lutamos bastante para conseguir certos tipos de mídia, que preferiam falar sempre dos mesmos assuntos: os velhos mangás nostálgicos dos anos 80 (de novo?!), o “mangá” francês (de novo?!!!)… Sempre os mesmos assuntos, ano após anos. E como as grandes mídias só permitem “Que um só assunto de mangá para a ocasião da Japan Expo”… No fim, houve entrevistas muito boas na imprensa. Mas sem surpresa, entre todos os jornalistas, três quartos eram mulheres. Isso não é completamente insignificante quando sabemos o quanto esse ambiente é masculino.
Então, claro que é verdade “esta história”. Eu já falei sobre isso em uma conferência em Angoulême [o “Festival Internacional da Banda Desenhada de Angoulême”] (novamente, disponível em nosso canal no YouTube), mas eu penso que está, sem dúvida alguma, ligado a misoginia comum da sociedade e que nos é incutida desde que somos pequenos. Seja ela consciente ou não. O modelo de sucesso, é um modelo masculino. Falamos constantemente de desigualdades, e não é à toa… Então, uma mulher que lê obras para “homens”, é aceitável. O inverso é “degradante”, porque há uma queda na “escala social”.
- Dito isto, esta história de classificação nos mangás, faz anos que as editoras e “especialistas” de todos os tipos debatem há anos se há uma diferença entre o que está no Japão e o que está na França, mas além de simplificar a vida do livreiro para armazenar em suas prateleiras, é de fundamental importância para o leitor? Na sua opinião, esta última deveria – e poderia – libertar-se dela?
Como sempre… O que é “o leitor”? Há tanto leitoras como indivíduos. Há pessoas que se preocupam com isso, outras não. O que acredito profundamente é que todo mundo deveria cultivar uma curiosidade saudável e sentir-se livre para fazer qualquer leitura. Mas não vivemos em um mundo ideal, longe disso. Na verdade, não estou certo que esses rótulos Shoujo/Shounen/Seinen ajudam as livrarias. Depende da livraria. Há quem respeite os rótulos das editoras francesas. Outros não… Cada livraria é livre para fazer o que quiser, já que são eles que conhecem seus clientes. Mas bem, quando você vê que, por exemplo, recentemente, soubemos que uma livraria tinha colocado Aime ton prochain [Ijousha no Ai] na seção Shoujo… O que posso dizer? Seriamente?! Por que tem uma garota na capa? O selo WTF?!4 é, no entanto, muito marcado e identificado (pelo menos foi o que pensei…). Mas lá estava, tinha uma garota na capa… Eu vi títulos como Reine d’Egypte [Aoi Horus no Hitomi – Dansou no Joou no Monogatari] também classificado na seção Shoujo. Então estamos ajudando os livreiros ou não, com todas essas subcategorias de coleções e subcategorias de marca e outras novas categorizações. Não tenho certeza… Não é à toa que na Akata, utilizamos palavras-chave na parte de traz dos mangás. Eu acho que exista algo mais explícito que isso, no fim. E é preciso que cada um se responsabilize: editoras, livrarias e também, jornalistas. Para cada um fazer sua parte do “trabalho”.
Dito isto, quando mudam as categorias japonesas, isso representa um problema real para mim. Quando decretamos que um título não corresponde a sua categoria [demografia, nesse caso] de origem, o que isso quer dizer exatamente? É realmente nosso papel dizer que “isso não é um Shoujo” e o colocar como Seinen? (ou o inverso…) Faz passar que colocamos um aspecto puramente financeiro/comercial na frente do aspecto cultural e é realmente problemático. Isto levanta a questão essencial da reapropriação cultural, do respeito a outra cultura, da alteridade, da diferença. E nosso mundo, ao menos nosso país, está sofrendo muito com isso nesses últimos tempos. Se nos interessamos pela cultura japonesa, devemos nos interessar pelo que ela realmente é. Não de fachada. E “o mangá Shoujo” é profundamente japonês. Porque em todos os países que têm uma cultura de arte sequencial, nenhum desenvolveu quadrinhos femininos como o Japão. Nesse sentido, com mais de 40 anos de história e desenvolvimento, o mangá Shoujo é realmente um elemento específico da cultura japonesa. Mexer nos rótulos do Shoujo é provavelmente negar um aspecto muito concreto do Japão. Não é respeitoso. De uma certa maneira, é uma atitude neocolonialista. Sempre esta superioridade de “nossa” cultura caucasiana que se intrometeu naquilo que não lhe dizia respeito, literalmente por todo o mundo. Claro, o Japão não era um país “oprimido” (bem, ainda temos de questionar a abertura forçada pelo General Perry), mas foi um dos “perdedores da Segunda Guerra Mundial”. De qualquer maneira, visto o contexto global do mundo e o profundo mal-estar que se instalou entre “a cultura branca” e todo o resto do mundo, penso que devemos ter muito cuidado. Se vamos utilizar palavras japonesas, devemos utilizá-las bem. Caso contrário, não as utilizamos.
- De outra forma, a questão do gênero e esta fronteira entre menino/menina ou homem/mulher é uma questão que você não exista em realçar através da escolha de certos títulos… É uma escolha que tem um aspecto de luta, na maneira como você às vezes fala sobre isso ou na maneira como outros, visivelmente menos abertos, culpam Akata por isso5 (ou apenas dizem que você está louco por fazer essa escolha, se bem me lembro de alguma delas). Será porque o mangá fala melhor sobre isso do que outros formatos, uma luta pessoal dos mangakas que você seleciona ou que lhe diz respeito. É simplesmente porque o mangá, assim como outras mídias, não tem motivos para não abordar o assunto… Resumindo, minha pergunta é um beco sem saída, vou parar por aqui e deixar você discutir conosco esta problemática…
Eu não posso falar por todas as mídias, não domino todas e sou, acima de tudo, um editor de mangás. O que é certo, no entanto, é que na cultura japonesa, a deusa do Sol é uma mulher, não um homem. Por outro lado, a divindade da Lua… é um homem. Isto “talvez” não seja completamente trivial. Ao mesmo tempo, por exemplo, no teatro, os homens encarnam também os papéis femininos e o conceito japonês de “bi” (beleza) transcende os gêneros. Há verdades absolutas em tudo isso que nós perdemos, pelo menos na França.
Então, as obras de origem japonesa têm a capacidade de abordar as questões de gênero melhor que as obras de outros países? Ou, em todo caso, em um nível diferente e complementar? Provavelmente… Mas é como tudo, tem o que comer e o que beber. E sobre as questões de gênero, há uma classificação real a ser feita. Especialmente em nosso tempo, onde tudo vai muito rápido, onde as reflexões vão muito rápidas e onde cada um sempre tendem a ver as coisas por um espectro distorcido de sua própria cultura. Apesar de tudo, não é nada trivial que os mangás que publicamos questionem o que ser um homem ou uma mulher. Eles respondem entre si, complementam-se e se endereçam a públicos diferentes.
Isso foi muito assertivo em 2019, e não é por acaso que nós mudamos nosso conceito de coleção retirando os rótulos de “gênero”. Mundialmente, tudo que é “confinante”, “estigmatizante”, me assusta. Isso cria comportamentos de medo pelo outro e então, de ódio, em relação ao que é diferente de “si”. As normas de gênero como as que conhecemos hoje são construções sociais bem mais recentes do que podemos acreditar, e elas nos prendem em nossos corpos, no nosso papel imposto de fora pela “sociedade”, em um eu artificial que nos desconecta de nossa autenticidade. Elas nos estigmatizam. E digam o que quiserem, o Japão ainda tem muito a nos (re)ensinar nesse sentido.
De fato, o Japão contemporâneo está cheio de problemáticas, incluindo o sexismo. Mas os artistas já falam sobre isso há muito tempo. Especialmente no manga, onde poucos assuntos são realmente tabus (e na pior das hipóteses, os mangakagas sabem os contornar). O desenvolvimento do mangá feminino ao longo de mais de 40 anos permitiu que muitas pessoas abordassem esses assuntos de frente. A próxima etapa desta reflexão será um ano de 2020 muito feminista, no sentido amplo do termo, suponho? Seja com Shoujo ou com Seinen. Começamos com os pés firmes com En proie au silence [Sensei no Shiroi Uso], não por acaso. Aliás, Akane Torikai começou sua carreira no Shoujo. De certa maneira, eu acho que podemos dizer que uma obra como Runningir Girl, ma course vers paralympiques [Blade Girl – Kataashi no Runner] é uma obra feminista. Porque ele apresenta uma protagonista em um papel não romantizado, mas também porque essa mulher não atende aos padrões de um corpo pseudoperfeito. Sem uma perna, Rin recupera sua própria feminilidade. O catálogo de 2020 vai ser muito transversal nesse sentido. Com obras violentas psicologicamente e reivindicativas, com outras temáticas afins, sobre os corpos, com histórias de vida de mulheres etc. Estamos construindo coisas etapa por etapa, com prudência.
O mangá Shoujo, “longe dos holofotes”?
- Para a última parte da entrevista, gostaria que falássemos do potencial do Shoujo e do seu “”futuro””. Akata e Delcourt viveram um período próspero para o Shoujo no começo dos anos 2000. Você mesmo, na Akata, enquanto [editora] independente, ofereceu inúmeros títulos com sucesso muito variável apesar de seu potencial, se compararmos a recepção de orange com Ugly Princess, por exemplo (embora eu diga isso com cautela, não sei os números reais de vendas de Ugly Princess). Você acha que o Shoujo pode voltar a ser o centro das atenções como Nana ou Fruits Basket6?
Mas o que queremos dizer com “ser o centro das atenções”? Mais uma vez, falar de números de vendas e contar com isso para falar de “potencial”, de “visibilidade” ou de “sucesso”, me parece muito limitante. E muitas vezes é muito tendencioso, porque (estou divagando) é preciso, na verdade, olhar o balanço de cada projeto para saber se um setor está “saudável”. Um mangá que vende 3 mil exemplares, comprado a um preço razoável e justo, não pode ser mais rentável do que um que vende 10 mil exemplares, mas que foi comprado muito caro e apoiado por uma campanha? Na verdade, o que é louco (e na minha opinião, revelador) é que estamos falando de orange e Ugly Princess… Porém, Perfect World ou GAME – Entre nos corps [GAME – Jogo Proibido] já passaram por lá. Na minha opinião, isso é completamente sintomático da falta de atenção ao mangá Shoujo. É a mesma coisa para muitos prêmios oficiais que lutam para incluir mangás Shoujos em suas seleções… Então não vamos nem falar de ganhar um prêmio! Ele não é “o centro das atenções” porque as pessoas o desprezam, entre aqueles que não estão interessados nele, ou aqueles que estão interessados nele tardiamente ou de forma tendenciosa. Mesmo em certos pseudo-defensores do Shoujo, existem discursos perigosos, que tendem, por exemplo, difamar os “Shoujos de romance” e/ou os “Shoujos contemporâneos”, em uma idealização do Shoujo vintage [clássico]. Há obras desinteressantes dentro do vintage também… Enfim, o mangá Shoujo já encontrou seu lugar, longe dos holofotes e das luzes de palco. Porque as leitoras (e muito raros, leitores) o apoiam muito concretamente. E de repente, temos verdadeiros sucessos. Mas que não necessariamente são falados na imprensa.
No que diz respeito ao futuro, veremos, portanto, se algum Shoujo chegará a passar o “teto de vidro” como o feito em orange ou Perfect World. O ano de 2020 será um ano crucial, certamente, entre a evidente chegada de um certo título que fez muito barulho no Japão (mas cujo direitos foram comprados excessivamente caros), ou o retorno de certos títulos “adultos de nicho”… Akata reabriu suas portas quando se relançou como [editora] independente. Se a mídia não estava muito interessada nisso, nossos “colegas” editores não se enganaram.
- Se olharmos essa questão do âmbito do público geral do ponto de vista mais social: a mulher e mesmo as jovens japonesas não vivem na mesma sociedade que suas homólogas francesas, entre misoginia, visão sobre casamento, sexualidade, a relação com crianças, etc. Tudo isso pode significar que, na sua opinião, há códigos, personagens e problemáticas que escapam do leitor francês ou, pelo contrário, o fato de que certos personagens de Shoujo e certos mangás ganharem o apoio do público mostraria, finalmente, todas as diferenças sociais que mencionei são diferentes apenas superficialmente?
Isso vai de encontro com o que mencionei acima, mas este é tipicamente o tipo de pergunta onde pisamos em ovos. Porque enquanto europeus, estamos sempre na fronteira quando falamos de assuntos como esse, com o risco de julgar a outra cultura. Normalmente, se estamos falando de misoginia, acho que deveríamos limpar nossa porta primeiro. Mais uma vez, eu vou pegar um exemplo concreto… A publicação de GAME – Entre nos corps [GAME – Jogo Proibido] na França é absolutamente fascinante com as reações que ela causou. Não temos medo de reivindicar a obra como uma série feminista. De fato, o volume 1 mostra uma mulher que não consegue encontrar equilíbrio, porque a sociedade é machista e não aceita uma mulher brilhante nos negócios. E como resultado, ela decide conscientemente, ceder as investidas de um cara tóxico. Mas ela sabe perfeitamente o que ele é e ele não é idealizado. Resultado: as críticas negativas que eu li vieram em grande maioria de homens. Houve uma espécie de reclamação generalizada sobre esse mangá. Foi fascinante… e assustador ao mesmo tempo.
Devo, no entanto, salientar que na altura da publicação de GAME, além de mim, a equipe da Akata era formada por outras pessoas que são duas mulheres e que falaram muito bem do tema da série (se me permitem um parênteses, agora, tudo vai depender da evolução da história… dedos cruzados…). Como dissemos na nossa campanha publicitária: “as mulheres falam melhor sobre isso”. Na realidade, não cabe a mim responder esse tipo de questão. Aliás, é problemático por si só que seja você [um homem] que esteja me fazendo uma questão dessa natureza. Não estamos em pior posição para debater isso? Então, acredito que a resposta mais aceitável, A única resposta honesta que posso dar, é que o sucesso dos livros (incluindo GAME) é a melhor resposta.
- Por um lado, dados alguns bons anos comerciais para mangá desde 2014-2015, como tem se saído o setor Shoujo nos últimos anos, e por outro lado, que avaliação você tira dos seus novos lançamentos Shoujo de 2019 no momento?
Tenho muito cuidado com o que chamamos de “bons anos comerciais”, porque mais uma vez, o desvio padrão entre o que vende muito (muito, muito) bem e o que não vende, é muito grande. A maior parte dos relatórios que vemos são completamente truncados e se apoiam em porcentagens de quotas do mercado, mas sem colocar em perspectiva os preços de vendas das obras, ou mesmo a quantidade de títulos publicados. Em todo caso, claramente, com o sucesso de títulos como orange ou Perfect World, há um renovado interesse “comercial” da parte dos grandes grupos editoriais. Algumas editoras e analistas gabaram-se de que em 2018 o mercado do Shoujo tinha crescido novamente, mas dei imediatamente o alarme às editoras japonesas: se olharmos os números de vendas sem o conteúdo, as análises são completamente falsas. De fato, a chegada de edições deluxes de enormes best-sellers (Fruits Basket e Card Captor Sakura), bem como as sequências que os acompanham, de maneira completamente lógica, o mercado tem estado em alta. Mas é um sucesso relativo, já que se baseia em antigos best-sellers. Neste caso, não podemos falar de uma renovação verdadeira. Sem esquecer do efeito de “massa”, diria mesmo “terra arrasada” da Pika, que literalmente inundou as prateleiras com seu “conceito” Shôjo Addict. Aumentando a produção, matematicamente, isso aumenta o mercado. Sejamos claros: o objetivo dos grandes grupos deste tipo é sufocar a concorrência ganhando visibilidade, mesmo que isso signifique não ser rentável. Mas em nenhuma análise, eu vi falar em vendas médias, ou mesmo da rentabilidade dos projetos. Em relação a isto, é evidente que no fim, o ano de 2019 corre o risco de rever o “mercado do Shoujo” em queda.
Além disso, se for para falar de nós, é um pouco cedo para tirar conclusões do ano de 2019, que ainda não acabou. Eu constato que SOS Love [Konna Mirai wa Kiitenai!!] e Aromantic (love) Story [Kiryuu-sensei wa Renai ga Wakaranai.] transformaram maravilhosamente o ensaio e que essas duas séries lançadas em 2018 conseguiram fidelizar seu público, ao mesmo tempo que convencem cada vez mais leitoras. Celle que je suis [Kono Koi ni Mirai wa nai] foi um sucesso quase que imediato e em breve iremos lançar a terceira tiragem do primeiro volume (em menos de um ano). Estou um pouco decepcionado no momento com os resultados de Bless You [Kami-sama no Ekohiiki], que na minha opinião, é um dos melhores Shoujos do ano, mas o boca a boca pode fazer maravilhas, dadas as reviravoltas que a história reserva nos dois últimos volumes. Percebo também que estamos começando a fidelizar nossa coleção One Shot Shojô, então calculando bem nossos custos, certamente iremos encontrar um equilíbrio neste conceito. E finalmente, os primeiros resultados muito encorajadores sobre nossos lançamentos de volta às aulas, a saber My Fair Honey Boy [Mizutama Honey Boy] e Tant que nous serons ensemble [Saraba, Yoki Hi]. Em breve, podemos também precisar reimprimir o primeiro volume de Entre Deux [Sakura-chan to Nozomi-kun], cuja a primeira tiragem foi menor que as duas séries mencionadas anteriormente. Veremos se podemos confirmar isso na sequência das séries, mas dadas as qualidades das obras, estou bastante confiante.
O bom Shoujo “é aquele que amamos”
- Última pergunta: para você, o que é um bom Shoujo e o que ele faz para ir parar no catálogo da Akata?
Para mim, a base é se gostei ou não. Simplesmente. Se eu sou capaz de apresentar o título em uma reunião editorial, com vontade de defendê-lo e partilhá-lo. Ele me estimula intelectualmente? Artisticamente? Ou mesmo emocionalmente? O que encontrei, enquanto leitor? Se eu sou capaz de responder a essas questões, de maneira sensata e argumentada, então eu suponho que ele tem um lugar em nosso catálogo. Na verdade, o processo é o mesmo para um Shoujo e para qualquer título. Quando amamos alguma coisa, não é natural querer compartilhar? De fazer os outros o descobrirem? Eu parto do princípio que se uma obra, seja ela qual for, me toca, me fala, me comove, me causa repulsa, me questiona, não há razão para que não seja igual para as outras. Evidentemente, enquanto indivíduo, temos histórias de vida diferentes. Por consequência, cada um terá sua própria leitura de uma obra, sobretudo para um Shoujo, já que como eu disse, muitas vezes há abertura para interpretação nos monólogos.
Depois, obviamente, como editora pequena e independente, a questão financeira é crucial. Cada escolha de obra deve ser pensada e refletida. Sejamos claros: cada escolha é uma risco real (mesmo aqueles que podem parecer completamente triviais). E quero concluir dizendo que cada escolha é também uma história à parte, um caso à parte. Porque depois de tudo, falamos de cultura e que cada obra que propomos é uma série à parte, um “encontro” diferente. No fundo, é meu desejo de compartilhar as leituras que adoro que justamente me levou a fazer vídeos explicativos por cada obra que nós publicamos.
Vá assistir ao “L’instant Shôjo”, que será a melhor resposta possível para essa pergunta tão genérica (risos).
- (Risos) É perfeito como palavra final! Obrigado novamente pelo seu tempo!
A entrevista termina ali. Ela foi realizada pelo Paul OZOUF, redator-chefe do Journal du Japon. Novamente, reiteramos que ela está disponível no site deles e vocês podem lêl-ala na íntegra através deste link ^^
Notas e alguns complementos de contextualização sobre a entrevista:
1. Delcourt (criada em 1986) e Tonkam (criada em 1994) eram editoras diferentes. Em 2002 a Delcourt criou, em parceria com Dominique Véret, a Akata, um selo para a publicação de mangás. Anos depois, no final de 2005, a Delcourt se tornou acionista majoritária da Tonkam e em 2014, elas se fundem para formar a Delcourt/Tonkam. Hoje, é um grupo editorial e uma das grandes editoras do mercado francês. A Akata se separou do grupo e se tornou editora independente no final de 2013.
2. Corre “nos corredores” do mercado de mangás francês que “Candy Candy” foi “um dos responsáveis” pela construção do arquétipo do mangá Shoujo ser romance escolar na França. Ele teria feito tanto sucesso, ao lado de obras semelhantes que vieram depois, que fez o público rejeita qualquer tipo de obra que fugisse do arquétipo, como “Angel Sanctuary” e “X”, ao ponto de fazer com que as editoras passassem a mudar a demografia de mangás Shoujo que não fossem parecidos com o arquétipo (e vice-versa). Mas como deu para ver, essa versão da história não é muito verdadeira.
3. Na França, as editoras e uma parcela considerável do público costumam não usar “Josei”, chamando tudo de Shoujo. Isso tem mudado há algum tempo. Ainda se usa “Shoujo” para se referir à demografia feminina quase que como um todo (especialmente a Akata), mas algumas editoras tem usado “Josei”, como a Delcoult/Tonkam que este ano, criou uma coleção Josei (o primeiro título lançado nela foi “Gourmet Détective”, da Akiko Hagashimura).
4. O selo WTF?! é destinado para obras com propostas inusitadas ou mesmo doidas. Algumas das obras lançadas no selo são, por exemplo: “Teenage Renaissance” [Shishunki Renaissance! David-kun], “Papa est une licorne” [Unicorn Otousan] e “Hentai Kamen, the Abnormal Super Hero” [Kyuukyoku!! Hentai Kamen].
5. Em uma entrevista com diversas editoras e que o Bruno participou, ele comentou que há uma parte do público que ataca a Akata porque, segundo essas pessoas, “politizam as obras” e “modificam a proposta inicial delas” [no sentido de ‘colocar política onde não tem’]. Os ataques incluem misoginia, machismo e homofobia. Traduzimos essa entrevista e está disponível no Twitter (X) do blog.
6. “Nana” e “Fruits Basket” (esse último somando 1ª e 2ª edição) seguem sendo até hoje dois dos maiores sucessos da Delcourt/Tonkam. São duas séries milionárias (em termos de cópias vendidas), sendo que Fruits Basket possui 2.6 milhões de cópias vendidas na França e é a maior vendagem da editora (maior até que o acumulado de toda a série de “Jojo’s Bizarre Adventure“), e Nana tem 1.8 milhões de cópias vendidas. Fonte: Valentin Paquot.