Um papo bem legal com um excelente profissional na área de tradução de animes e mangás.

Tradutores são uma parte vital para qualquer mídia. São pessoas que se dedicam para dominar dois idiomas e possibilitar que pessoa leia ou veja algo que estaria em uma língua que talvez não entendam completamente. É claro que eles não são os únicos que movem essa engrenagem, mas é inegável a sua importância.

Hoje trago a vocês uma entrevista com um deles, o tradutor Fernando Mucioli, também conhecido como Tengu. Talvez você não o conheça, mas se acompanha o mercado brasileiro de mangás, ou viu algum anime na Crunchyroll, muito provavelmente já deve ter se deparado em algo que ele traduziu. Eu mesmo tinha vários mangás que ele trabalhou e só descobri na hora da entrevista.

Essa entrevista vai ser um papo mais técnico, falando mais sobre como funciona o trabalho de tradução. IMPORTANTE: Como coisa boa nunca é demais, esse post vai ser a parte 2 de uma parceria nossos amigos do Anicafe, a qual a parte 1 é o episodio do podcast, o Anicafé Cast, onde o host Breno e eu(isso mesmo, vocês vão ouvir a minha voz) batemos um papo mais pessoal com o Tengu. Lá falamos sobre seu inicio de careira e de sua experiência na profissão. Deem uma conferida que ficou bem legal e espero que gostem da entrevista.


Minha primeira pergunta é: Tradução e adaptação são duas coisas diferentes. Poderia comentar quais são as diferenças?

A gente costuma falar em termos de localização. Existe tradução e localização. O que a gente entende é que a tradução é pegar, tentar, buscar um pareamento de palavras, uma equivalência entre os dois idiomas e meio que fica nisso mesmo. Quando a gente pensa em localização, não é só traduzir o que tá sendo escrito ou o que tá sendo falado, mas também adaptar este texto para algo que seja mais próximo da realidade de quem está lendo naquele idioma e transmitir não só a palavra, mas o sentimento também. 

Um exemplo disso é a decisão em “Boku no Hero Academia” com o Deku chamando o Bakugou de Kacchan em japonês. Acho que no mangá ficou Kacchan e no anime da Crunchyroll ficou Kazinho e muita gente estranhou o Kazinho. Para mim é o exemplo perfeito de uma boa localização, porque você está transmitindo em termos fáceis de entender para quem está lendo aquele texto em português a sensação que passa o Kacchan para o leitor em japonês. Então é meio que nessa linha. Você tentar (não só traduzir) fazer com que a pessoa entenda como o leitor do idioma original entenderia. Para tentar passar o mesmo significado, a mesma sensação para esse leitor. Quando a gente fala em localização, em adaptação, a gente pensa nesse sentido em você trabalhar mais na tradução para que ela seja mais culturalmente, por assim dizer, próxima de quem tá lendo.

Normalmente se tem quanto de liberdade para adaptar? E quanto você a usa?

Depende da obra e depende do licenciante. “Pokémon” eu tinha zero liberdade para adaptar. “Pop Team Epic”, o anime, tive 100% de liberdade. O mangá de “Zelda”, alguma liberdade. Tudo depende das coisas que o licenciante exige. Toda a liberdade que me é dada, eu uso. Vamos até o limite de onde der pra ir. Obviamente se ver alguma coisa e considera que não precisa mudar a gente não muda. Mas pensando da localização, se tem algo que dá para ser falado de forma mais legal, mais interessante, a gente mexe. Depende muito da linha editorial da editora do licenciante. Tem vários fatores que influenciam na liberdade que se tem para traduzir uma obra.

Poderia dar um exemplo de adaptação de texto?

Por exemplo, tem o manga de “Re:zero” em que o Subaru tá falando com a Emília. Em certo ponto da história ele chama ela de E.M.T que em japonês seria “Emilia-tan Maji Tenshi”, que em linhas gerais quer dizer que a Emília é muito “anja” e no mangá as letras E.M.T estão desenhadas no quadro. Então o desafio aí era criar alguma coisa que mantivesse o mesmo sentido do original e que mantivessem as iniciais E.M.T, porque estava desenhada e não podia mudar. Até se pudesse, mas idealmente você usaria o que já está ali disponível e tentar fazer um texto mais legalzinho, mais divertido, já que era uma cena divertida. Então a escolha que eu tomei foi traduzir como “Emilia muito tchutchuca”. Aí o editor pegou e trocou para “Emília minha tchutchuca” que para mim achei perfeito, excelente essa alteração e acho que manteve o sentido. Manteve as letras e ficou bacana/divertidinho. Então fiquei satisfeito com essa escolha. É o tipo de coisa que se faz em termos de adaptação, de localização.

Aproveitando que você falou do editor, normalmente o quanto o editor mexe no texto depois de traduzido?

Depende bastante também. Depende se ele julga a qualidade e acha melhor alterar um termo. Se ele acha que um termo precisa ser adaptado de alguma forma. Então depende bastante. Tem editores que mexem bastante no texto. Alguns mexem menos então é assim. Vai também de cada linha editorial de cada empresa, mas sempre tem alguma coisa que o editor mexe.

Qual adaptação foi mais difícil de fazer? E qual te deu mais orgulho?

Eu acho que para as duas perguntas a resposta é “Pop Team Epic” que está disponível no Crunchyroll. Uma série de comedia que talvez seja a minha obra favorita de ter trabalhado nela. Traduzir humor é um desafio grande, mas que é um desafio que eu gosto muito, então porra, eu gostei demais. Assim para dar outro exemplo: “Pokémon” porque é uma série de mangás que tem um glossário extenso para usar como referência. Tinha que ter muito cuidado na escolha para não errar esses termos e tal. Fora isso, uma coisa que deu muito trabalho foi trabalhar em dois guias de Naruto, guia de personagens. Esses guias com gráfico, com explicação de técnica…. é muita coisa. Muito texto, muito termo técnico… Dá muito trabalho. Talvez esses 3 exemplos deem uma boa ideia das adaptações que deram trabalho 

Tem muitas diferenças de traduzir anime, mangá e light novel? E entre eles você tem um favorito?

Tem diferenças, porque a light novel você tá meio que reescrevendo um livro. Tem que ter muito contexto. O texto é mais complexo. Tem muita descrição. Tem que ler com mais atenção. Não é só dialogo, dialogo, dialogo. Nesse sentido, o mangá é muito mais simples e o anime é mais próximo do mangá. A diferença principal é que como na Crunchyroll a gente trabalha mais com os simulcast que são os anime que entram no mesmo dia que passa na TV do Japão, a gente precisa trabalhar neles com um pouco de rapidez. Não chega a ser uma pressa, mas a gente não pode ficar muito tempo pensando. Não tem muito tempo para pensar nas melhores adaptações possíveis. Chegou o arquivo, mete o pau. Talvez o meu preferido seja trabalhar com manga, porque dá menos trabalho que uma light novel e normalmente tem um prazo maior para ficar olhando para aquilo e pensando como é que vou resolver isso, aquilo. Talvez manga seja minha mídia favorita de trabalhar.

Quanto tempo antes você recebe um episódio de um simulcast?

Depende também. É triste falar que tudo depende, mas depende, porque às vezes são dias ou são horas ou são vários dias antes. Varia realmente bastante.

E como faz quando recebe com horas?

A gente senta é faz. Às vezes, por conta disso, uma série pode subir atrasada por exemplo. Todo mundo sabe que “essa série chegou muito em cima da hora, então ela vai subir atrasada” e todo mundo tá ciente disso. Vai assim, mas é isso. A gente chega e lasca o pau.

Agora sobre o mercado, como funciona o mercado de trabalho para tradutores?

Depende também, porque o lance é que às vezes as pessoas me perguntam como eu faço para entrar no mercado. As editoras precisam saber que você tá no mercado, então ter um portfólio de traduções, estudar bastante… Ah, uma coisa importante é que um tradutor tem que ter um português muito bom. Você tem que ter um domínio muito bom para a qual você está traduzindo o texto, seja japonês, inglês, o idioma que for. Você tem que treinar, criar um portfólio, pegar prática na tradução de alguma coisa e se mostrar pro mercado. É difícil falar em perspectivas futuras porque a economia está num ponto complicado no mundo inteiro e sinceramente não sei dizer o quão aberto o mercado está para novos profissionais de tradução. Eu sei que por exemplo, inglês está muito saturado, porque tem muita gente que faz tradução de inglês e tem muito profissional. O japonês não tem tanta gente como o inglês, francês, italiano, essas línguas mais tradicionais. Não saberia dizer o quão aberto o mercado está para novos profissionais, mas o lance é esse, você treina, estuda e se mostra para o mercado, falar com editores, falar com profissionais do mercado, para aí vendo qual é o caminho que você quer seguir para realmente entrar na profissão.

Você é uma pessoa com um bom background sobre videogames e você traduziu muitos mangás que são adaptação de jogos. O seu background ajudou em algo?

Sim, sem dúvidas, no que diz respeito a “Pokemon”, “Zelda”. “Yokai Watch” menos porque eu não cheguei a jogar “Yokai Watch”, mas acho que talvez “Zelda”, e“Sword Art Online”, saber termos de MMO, jargão, me ajudou a traduzir “Sword Art Online”. Para “Goblin slayer” tem bastante RPG, RPG de mesa e tal. Então sim, todo conhecimento ajuda.

Para finalizar, tem alguma história que queira compartilhar com a gente?

Uma vez eu trabalhei como intérprete para o produtor de “Devil May Cry 5” quando ele veio para o brasil para a BGS de 2018. Eu acompanhei a equipe da Capcom como intérprete. Fora do trabalho, a gente ficou conversando sobre vários assuntos. Aí ele falou: “Me leva para conhecer alguma loja de games aqui do brasil” e a gente estava ali num shopping ali, próximo da BGS. Fomos lá e aí a gente viu o manga de “Dragon’s Dogma” que foi dirigido pelo mesmo diretor de “Devil May Cry”. Ai eu falei: “Que legal. Eu que traduzi esse mangá do ‘Dragon’s Dogma’ que a JBC lançou” “Sério? Posso tirar uma foto, que vou mandar lá para o diretor.”. Ele tirou uma foto minha segurando os mangás e mandou para o diretor de “Devil May Cry” e “Dragon’s Dogma”. Foi uma experiência muito engraçada que eu passei.

Obrigado por ceder seu tempo

Eu que agradeço e obrigado pelo convite.


O Tengu também faz parte do Jogabilda.de, site/podcast focado em falar sobre vídeo games. Caso goste do assunto, recomendo fortemente que deem uma olhada no trabalhos deles. Casso não, eles também tem um podcast para falar de anime, o Re:JACK. Também recomendo.

2 thoughts on “Entrevista com o tradutor Fernando Mucioli (Tengu)

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