A cada ano que passa, a John Tarachine se torna uma autora “incontornável”, como diriam na França. Do tipo de autora cuja leitura de suas obras possui um cunho interessante, tanto pela qualidade narrativa, como para conhecer a geração de autoras do cenário editorial japonês, em especial, da demografia feminina.
2024 marcou o ano do 10º aniversário da editora Akata enquanto editora independente1 e em parceria com a organização da Foire du Livre de Bruxelles (Feira do Livro de Bruxelas), na Bélgica, foi possível levar a John Tarachine para o país e para aquela ocasião, a editora até mesmo fez uma capa variante para o 5º volume, que estava sendo lançado no evento. A Feira do Livro de Bruxelas aconteceu de 5 a 7 de Abril e o site Le cabinet de mccoy realizou uma entrevista com a autora. A entrevista foi disponibilizada recentemente por eles e nos deram autorização para que ela fosse traduzida para o português e publicada em nosso site. Agradecemos imensamente ao Le cabinet de mccoy ^^
De 5 a 7 de Abril, na ocasião da 53ª edição da feira do livro de Bruxelas, pela primeira vez, o salão colocou o mangá em destaque o dando um distrito dedicado. O espaço assumiu a operação montada pela plataforma Manga.Io [plataforma de mangás digitais] durante a 22ª Japan Expo [maior evento dedicado a animes e mangás na França] e no Festival International de la Bande-Dessinée de Angoulême em 2024. É no seio deste evento que a editora Akata comemorou seus 10 anos de existência. Afim de celebrar a data, a editora se associou à feira para a vinda de uma autora: John Tarachine (Goodnight, I Love You… [inédito no Brasil]; La sorcière du chãteau au chardon [A Feiticeira do Castelo, pela Mythos no Brasil]; Ocean Rush [Umi ga Hashiru Endroll, inédito no Brasil também]). Ao longo de todo o festival, a autora teve conferências, live drawings [lives de desenhos], masterclass e encontros para oferecer ao visitante a oportunidade de descobrir todo o seu percurso e seus trabalhos. Assim, eu pude ter a oportunidade de falar com a John Tarachine durante a feira do livro, enquanto participava das diversas reuniões e conferências que ela realizou…
Do desenho ao doujinshi
Antes de anunciar sua chegada no cenário do mangá, o início da alimentação da autora com o desenho começou desde muito jovem. Durante sua infância, John Tarachine recebia cotidianamente cestas de legumes de seus avós e a cada recebimento, para os agradecer pelo gesto, em retorno, ela dava desenhos de personagens inspirados nos legumes. Em um ambiente familiar que tinha uma certa atração pelo desenho, desde muito cedo ela cultivou a sensibilidade por esta prática.
“Na minha família, havia muitas pessoas que amavam desenhar, era o caso de uma das minhas avós que fazia pinturas à óleo e que me ensinou as bases. Eu também tinha irmãos mais velhos e irmãs que adoravam os mangás e desenhar, então o gosto pelo desenho se formou cedo.”
John Tarachine
Na continuidade disso, as revistas de pré-publicação japonesas destinadas aos jovens leitores, tais como Shounen Jump, Ribon e Nakayoshi acompanharam suas primeiras leituras de mangás. Quando chegou ao colégio, em um período onde parecia difícil de mostrar e afirmar seu gosto por quadrinhos, ela manteve essa paixão anunciada pelos mangás.
“Apesar de tudo, eu superei esse constrangimento e, ao mesmo tempo, decidi mudar meus hábitos de leitura. É dessa maneira que eu passei a ler obras de autoras como Kiriko Nananan ou Kyoko Okazaki, que fazem histórias para um público mais adulto.”
John Tarachine
Aos 19 anos, a autora descobre o mundo dos doujinshi (equivalente as produções de fanzines na França [e no Brasil]), e através dela, a liberdade de poder imaginar e desenhar as continuações das aventuras dos personagens que amamos. Esta descoberta e essa possibilidade sem limites ofertada por esse universo são uma coisa preciosa para a John Tarachine.
“Quando eu comecei a desenhar, eu não pensava realmente poder me tornar uma autora profissional. Então na faculdade, entre os meus 18 e 22 anos, eu desenhava meus doujinshi. E durante meu último ano, eu estava prestes a repetir. Foi um período muito complicado para mim. Então me perguntei o que eu gostaria de fazer com a minha vida. Foi, portanto, importante que eu tivesse uma conversa com minha mãe para partilhar com ela as minhas ambições. Neste momento, acho que surgiu em mim uma vontade e um desejo de fazer do mangá a minha profissão… Foi expondo isso com ela que esses sentimentos vagos acabaram se cristalizando.”
John Tarachine
Na sequência dessa mudança e encorajada por sua mãe junto com seus estudos, ela entrou em uma escola de arte para prosseguir seu aprendizado de práticas artísticas. Posteriormente, John Tarachine começa a publicar doujinshis e a ter estandes para os expor em convenções e eventos.
“Eu comecei a desenhar mangás sozinha, para meu prazer pessoal. Algum tempo depois, eu terminei pensando que se eu realmente desejava me tornar profissional, eu precisava começar a apresentar meu trabalho para as editoras. E foi após ter publicado um certo número dessas obras que uma editora veio ao meu encontro em uma convenção e me propôs trabalhar profissionalmente.”
John Tarachine
John Tarachine e o mundo do Boy’s Love
É em Maio de 2015, sob o pseudônimo “John Tarasumi” que a autora publica uma de suas primeiras criações profissionais no gênero do Boy’s Love: “Unknown” (inédito na França [e no Brasil]). John Tarachine faz parte das numerosas autoras que iniciaram suas carreiras profissionais no universo do Boy’s Love, um gênero que evoca relações amorosas homossexuais voltado para leitoras. É um meio que oferece uma ampla liberdade editorial, de roteiro e artística. Para a autora, o que distingue o Boy’s Love dos mangás Shoujo provém da da ênfase na paixão romântica e na sexualidade dos personagens.
“É verdade que em geral, as relações heterossexuais são a norma na produção dos mangás. E por que as mulheres são mais numerosas para escrever e ler Boy’s Love? É, talvez, porque muitas entre elas ficam desanimadas com o que leem nas relações heterossexuais, nas quais continuam a ter representações misóginas ou situações discriminatórias contra as mulheres. E finalmente, o Boy’s Love é um ambiente mais tranquilo, onde sabemos que não corremos o risco de nos depararmos com estas situações degradantes para as mulheres.”
John Tarachine
A chega no mangá Shoujo: ‘Goodnight, I Love You…’ e descobrir a si
Em Outubro de 2015, John Tarachine publica seu primeiro mangá Shoujo2: “Goodnight, I Love You…”, cuja pré-publicação foi realizada na revista Comic it. A autora nos incita a ter um olhar atento na excursão de um estudante japonês na Europa, que começa seguindo as palavras de sua falecida mãe que desejava que ele percorresse o mundo para anunciar seu desaparecimento aos amigos. John Tarachine retrata os laços familiares e amicais, o que contém nessas relações e a viagem como meio de descoberta de si. A autora sublinha, em diversas ocasiões na feira do livro, seu amor por viagens e confessa que aquela não era sua primeira visita à Bruxelas. Durante seus anos de universitária, graças a um trabalho de estudante, ela pôde ir para a Europa durante um mês. Para além do aspecto puro da viagem e da descoberta do desconhecido, a viagem é um meio que ecoa temas recorrentes em suas obras, a comunicação e as relações humanas.
“No que se refere a relacionamentos com os outros, eu sou o tipo de pessoa que mostra muita empatia e que se cansa rapidamente falando com as pessoas. E de maneira inconsciente, eu me conformo com o que meus amigos gostam e ajo de acordo.
Quando viajo sozinha, eu não preciso me preocupar com os outros, o que me permite reconsiderar o que eu amo verdadeiramente.”
John Tarachine, em uma entrevista no Jitsugyo no Nihonsha
A Feiticeira do Castelo
Sempre sem se distanciar de sua atração pela Europa, John Tarachine nos transporta para as terras altas escocesas, em uma visão fantásticas e onírica da vila de Edimburgo, com “A Feiticeira do Castelo” [“La sorcière du château aux chardons”, na França]. Na sequência de “Goodnight, I Love You…“, a autora é descoberta por uma nova editora especializada em um público mais adulto, uma mudança repentina de estilo e registro. O assunto é, também, sobre relações humanas, aqui entre a bruxa Marie que acolheu um aprendiz de bruxo cujo nome é Theo. Os personagens tentam sobreviver neste mundo mágico e se dão, mutualmente, coragem para conduzir suas vidas em meio a pressão que a sociedade coloca sobre eles.
“O tema dos meus mangás mudam em função das editoras que eu trabalho. Para ‘Goodnight, I Love You…’, eu fui questionada sobre minha vida pessoal e o que eu gostaria de fazer, pela minha experiência. Eu, então, partilhei minhas viagens e foi assim que decidimos contar o itinerário de um jovem homem. Com ‘A Feiticeira do Castelo’, eu mudei de editora, e a ideia de fazer um mangá de fantasia veio desta pessoa.”
John Tarachine
Ocean Rush: cinema, relação intergeracional e luta criativa
Em 2020, John Tarachine assina uma nova obra pré-publicada na revista Mystery Bonita intitulada “Umi ga Hashiru Endroll“, que criou, no seu lançamento, um eco poderoso entre suas leitoras e que se espalharia até o lançamento do primeiro volume, que rapidamente ficaria esgotado. A obra chegaria no cenário francês em maio de 2023, na Akata, sob o nome de “Ocean Rush”. Ela retrata uma relação intergeracional entre Umiko, uma viúva sexagenária que desenvolve seu gosto pela criação ao embarcar no estudo do cinema, e Kai, um jovem estudante da escola de arte do cinema. “Ocean Rush” é uma obra com um forte sentimentos de autoprojeção e através do cinema, a autora evoca questões sobre a arte e a criação.
“Eu não tenho realmente mensagens para transmitir às minhas leitoras, eu só desejo que elas se divirtam observando a maneira que Umiko e Kai vivenciam sua relação com a criação e a arte. O que eles expressam, os sentimentos que eles transcrevem em palavras, no que diz respeito à criação, são coisas que eu mesma experimentei. Deixo, então, aos meus leitores a conclusão do que eles querem tirar.”
John Tarachine
Para transcrever esses sentimentos e questões, a água e o mar exibem uma aparência curativa, mas também horrífera e violenta. Todas são maneiras de transcrever essas emoções.
“O mar que vemos em ‘Ocean Rush’ é um pouco o reflexo em que estão imersos nas suas emoções e confrontados com as suas contradições. E as vezes, o mar é similar ao vento que nos empurra para frente, mas é também algo que nos ameaça. Essas faces do mar dependem de circunstâncias da história, da situação e é esta diversidade que permite representar a água.”
John Tarachine
Explorando as prateleiras de filmes dos videoclubes da época, ela se deixou guiar pelo que as sobrecapas e resumos que encontrou lhe lembravam. Através destas excursões e repetidos empréstimos que John Tarachine cristaliza sua sensibilidade pelo cinema, moldando seus gostos de acordo com suas próprias impressões.
“Isso me permitiu ter consciência que certos filmes podem tratar de assuntos que a priori, podem não me tocar, mas a maneira como é dirigido e sua escrita terminam, finalmente, por me emocionar.”
John Tarachine
A comunicação, as relações humanas, a arte e o cinema… Ocean Rush está em continuidade com as temáticas do coração da autora. A obra torna-se mais livre e pessoal, como o que representou “Goodnight, I Love You…” onde seus editores a incitavam a questionar sobre sua experiência e sua relação com viagens. A obra a permite infundir naturalmente os desenhos as emoções mais intensas, cruas, assim como a permite de evocar temas mais íntimos.
“Não foi tanto as cenas ligadas ao ato da criação que me tocaram, mas mais as cenas ligadas à morte e ao luto. Notavelmente, no começo da história, quando vemos a Umiko indo até a tumba de seu marido, eu tinha vontade de mostrar de maneira palpável a atmosfera que podemos sentir neste tipo de lugar e o peso, as sensações que nos invadem quando somos tocados pelo luto. Como pude dizer em outras entrevistas, eu perdi meu pai quando eu era muito jovem, e há momentos muito concretos que ocorrem de eu relembrar. Lembro-me de uma frase que minha irmã havia dito antes do meu pai sair de casa, no dia que ele morreu, ela havia dito a ele: ‘Se cuide, vá com cuidado’. Há coisas como essas que me marcaram e que eu queria representar de maneira tangível.”
John Tarachine
Eu agradeço à Akata por organizar esta entrevista ao lado de John Tarachine, assim como Aurélien Estager pela tradução. Meus sinceros agradecimentos à Antoine (@Noissape – le blog noissapé) pela sua ajuda na elaboração desta entrevista, ao Frederico Anzalone, responsável pela produção mangá para entrevistas, masterclass realizada ao lado da autora. E enfim, ao Damien e a Marie, de comixtrip pela ajuda e suporte.
É isso pessoal, obrigado por lerem a entrevista. Novamente, agradecemos enormemente ao blog Le cabinet de mccoy por nos ter concedido autorização para traduzir a entrevista ^^
Como nota, por assim dizer, vale comentar: todos os BLs já feitos pela John Tarachine (Unknown; Shinonome Tantei Ibun Roku; Alcohol Communication) são volumes únicos e todos são inéditos no Brasil. “A Feiticeira do Castelo” é um mangá completo em 4 volumes e foi lançado no Brasil pela Mythos. “Goodnight, I Love You…” também é completo em 4 volumes, no entanto, é inédito no Brasil. Por fim, “Umi ga Hashiru Endroll” está em andamento no Japão com 6 volumes e o 7° está previsto para 15 de Novembro. Ele também é inédito no Brasil.
Por fim, vale dizer que escrevemos sobre “Umi ga Hashiru Endroll” no blog no fim do ano passado. Segue o texto:
1 A Akata, durante muitos anos, foi uma editora ligada à Delcourt (que hoje forma o grupo Delcourt/Tonkam), produzindo os mangás da editora. Nessa época, lá nos anos 2000 e até 2013, essa parceria entre as duas rendeu não só uma experiência riquíssima para a Akata, como também permitiu que a editora explorasse e fosse a responsável por trazer uma gama enorme de autoras e uma variedade enorme de mangás da demografia feminina para a França (Fusako Kuramochi, Mari Okazaki, Ai Yazawa, Natsuki Takaya e Nari Kusakawa são alguns exemplos de autoras). Em 2013 a Akata rompe com a Delcourt, passando a atuar, a partir de 2014, como editora independente.
2 Na França, é muito recorrente que não se utilize “Josei”. Por lá, o que é mais comum de se ver sendo dito – seja por editoras, como pelo público geral – é a utilização de “Shôjo” para se referir ao mangá feminino como um todo. A Comic it (mesma revista de “Hisohiso -Silent Voice-“, inclusive) é uma revista Josei da editora ASCII Media Works.