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Youko Nemu fala sobre o começo de sua carreira e de seus (poucos) mangás publicados na França!

Meses atrás, em abril, nós lançamos a tradução de uma entrevista com a Mari Okazaki. Essa entrevista foi lançada em agosto de 2023, no volume #25 da revista ATOM, revista francesa que busca entrevistar e apresentar obras e autores japoneses lançados na França. E nessa edição que era voltado a falar do trabalho de autoras mulheres, além da Mari Okazaki também tivemos uma longa entrevista com a Youko Nemu, outra mangaka de demografia feminina!

A Youko Nemu começou a sua carreira no final de 2004 e já tem mais de 20 anos produzindo mangás. Mangás esses que a grande maioria são de demografia feminina, consolidando sua carreira principalmente na FEEL YOUNG, revista Josei da editora Shodensha. Ela é uma mangaka que, assim como a Mari Okazaki, nunca foi publicada no Brasil e achamos que essas entrevistas são boas ocasiões para falar e apresentar autoras para o público que não necessariamente conhece essas mangakas ou que deseja saber mais sobre elas e seus trabalhos! Abaixo vocês conferem a tradução completa:


Livre estou

Autora principal da revista FEEL YOUNG, Youko Nemu observa minuciosamente o cotidiano exaustivo de algumas working girls que são obrigadas a fazer algo. Passou, como Mari Okazaki, pelo design antes de se lançar no mangá, ela cava um sulco emocionante entre o documentário, autobiografia e romance. Após o duo “New Love, New Life!” [Gozen 3-ji no Muhouchitai] e “First Job, New Life!” [Gozen 3-ji no Kikenchitai], é a vez do agridoce “Trap Hole” (publicado pela Kana) vir enriquecer a bibliografia francesa de uma mangaka que esperamos ver cada vez mais publicada em nosso país.

Ilustração de “Gozen 3-ji no Muhouchitai

ATOM – Em uma entrevista ao site natalie.mu, você declarou que para se tornar mangaka, você não teve outra escolha senão deixar seu trabalho da época, uma empresa de design de pachinko. Você até mesmo comparou essa mudança de carreira à loteria, dizendo que precisava jogar se desejamos vencer um dia… Hoje, podemos dizer que você ganhou, não?

Youko Nemu – Eu acho que sim… Eu joguei, de qualquer forma. E eu não me arrependo (ela reflete). Eu não tinha realmente outras possibilidades disponíveis para mim, sabe. Se eu quisesse entrar nesse ramo, tinha que arriscar. Não apenas molhar os pés, mas entrar totalmente.

ATOM – Em qual área você encontrou mais dificuldades: no design ou no mangá?

Youko Nemu – Meu trabalho no design não era fácil: trabalhávamos em condições no mínimo questionáveis, com muitas limitações aos acordos coletivos, lembro das horas intermináveis que passava no escritório, que provação! Então não tenho arrependimentos por bater a porta e ir explorar novos terrenos… E mais, além do ritmo e da quantidade de trabalho que vinha para mim cotidianamente, havia também essa rotina pouco estimulante intelectualmente. Fazer as mesmas coisas todos os dias, no contexto que te descrevi, não era o que há de melhor para estimular sua criatividade. Eu precisava encontrar o prazer de trabalhar, de me confrontar com novos objetivos, e o mangá me parecia corresponder a essas expectativas.

ATOM – Mais jovem, você não desejava fazer sua carreira no mangá?

Youko Nemu –Sim, eu pensei nisso vagamente. Até mesmo participei de alguns concursos de editoras, sem sucesso, e sem convicção, ainda por cima! De qualquer forma, não considerava realmente o mangá como uma oportunidade de carreira. É mais tarde, no momento de deixar meu trabalho de design, eu devia ter 24 ou 25 anos, que eu comecei a considerar seriamente essa opção. Não estava convicta de que conseguiria, mas tinha uma engraçada autoconfiança em mim. Pensava que talvez houvesse uma maneira de criar um pequeno espaço para mim nesta indústria, mesmo que perdida no fundo do conteúdo de alguma revista pré-publicação.


“As mãos me fascinam desde que eu era uma garotinha. Quando eu lia Shoujos, já era um elemento ao qual eu tinha uma fixação, especialmente porque muitas autoras as desenham com grande atenção aos detalhes.”

Youko Nemu

ATOM – Seu primeiro mangá profissional foi “Midnight Fruits“, uma história curta que você desenhou em 2004 e que foi publicada na coletânea “Pandora” (2010, inédita na França [e no Brasil – nota do editor]). Se trata de uma história divertida e mórbida, um tanto como uma variação cômica da célebre história “Abe Sada“. Em que estado de espírito você estava quando concebeu essa história?

Youko Nemu – Bem, ainda era bem jovem sabe, e com minhas amigas, nós falávamos bastante de histórias de amor. Então, naturalmente recorri às nossas conversas para desenhar este mangá, adicionando uma dimensão fantástica para não remover o enredo de triângulo amoro. Mas eu também não queria me aprofundar muito no bizarro, pois o resultado poderia ser, para mim, um pouco pretensioso demais, você entende? Assim, eu contrabalanceei a estranheza do enredo com alguns toques de comédia para que a leitura fosse mais leve e agradável.

Capa japonesa de “Pandora”

ATOM – Talvez você não tenha se dado conta, mas você inaugurou sua carreira com um mangá que é conduzido por… uma emasculação [remoção do pênis e do escroto]! Você desejava atribuir um significado em particular?

Youko Nemu – Dizendo assim, isso pode parecer um pouco curioso, de fato! (risos) Mas é preciso saber que na época, meu mangá não destoou tanto de outras histórias publicadas na FEEL YOUNG. Não quero revelar nada, mas se você tivesse conseguido ver o que produzia uma autora como Shungiku Uchida [grande autora de demografia feminina, com uma produção extensa no Shoujo e no Josei, a época (meados dos anos 2000), publicou mangás como “Deai ga Tarinai Watashi-tachi” (2001) e “Ikari to Tomo ni Ikimakure” (2004)], você teria se dado conta que ela estava muito acima de mim em termos de provocação (ela reflete). Eh, permita-me corrigir alguns dos meus comentários: agora pouco lhe disse que me inspirei nas conversas com minhas amigas para conceber Midnight Fruits. Evidentemente, a passagem violenta não se refere à nenhuma experiência pessoal… queria deixar isso claro!

ATOM – O cuidado que você tem no desenho das mãos é um elemento que percebemos desde as suas primeiras histórias curtas. De onde vem esse “maneirismo”? Você identificou outras mangakas que desenham mãos muito bem e que te inspiram?

Youko Nemu – As mãos me fascinam desde que eu era uma garotinha. Quando eu lia Shoujos, já era um elemento ao qual eu tinha uma fixação, especialmente porque várias autoras as desenham com grande atenção aos detalhes, notavelmente, com foco em particular nas unhas das heroínas… Há uma verdadeira expertise na representação das mãos e existe, aliás, uma literatura bastante rica no assunto, se quiser pesquisar. Por exemplo, se você precisa desenhar um personagem segurando um copo, bem, você verá que há um formato específico de mão para se respeitar – com suas dobras, a posição dos dedos etc. Eu acho que podemos, definitivamente, falar sobre uma nomenclatura gráfica de mãos e enquanto desenhista, tenho um enorme prazer em segui-la. Muito cedo, quis desenhar todos os tipos de mãos: abertas, fechadas, entreabertas… No gênero, minha referência permanece, provavelmente, com a Yamaji Ebine [autora de, por exemplo, “Indigo Blue” (2002)] que faz mãos realistas, mas permanecendo no estilo mangá, Ela soube encontrar um equilíbrio perfeito entre essas duas áreas.

ATOM – Sua primeira série lançada em formato impresso foi “New Love, New Life!” [2008-2009]. Para desenhar ele, você evoca suas memórias empresariais e remetem a certos episódios da sua antiga vida profissional. Como você apresentou este projeto ao seu responsável editorial?

Youko Nemu – Eu não o “apresentei” à rigor. Eu lhe explico: na época, já tinha vários one-shots no currículo e tinham acabado de me atribuir uma nova responsável editorial. No decorrer de uma discussão ao qual lhe falei sobre a minha dolorosa experiência em uma empresa de design, ela aproveitou a oportunidade e me disse: “Seu depoimento é interessante… Por que não usá-lo para desenhar um mangá?”. Honestamente, nunca havia pensado que ele tinha consistência para construir uma história, mas visto seu entusiasmo, concordei em tentar. Primeiro eu desenhei três capítulos para ver onde isso iria nos levar e foi assim que me iniciei na serialização.

Capas francesas de “Gozen 3-ji no Muhouchitai

ATOM – Não há um risco emocional quando colocamos muito de si mesmo, no sentido de colocar muitas lembranças pessoais, em um mangá? Você sabia dosar essa questão quando você começou sua carreira?

Youko Nemu – É verdade que podemos ser afetados mentalmente processando certas lembranças desagradáveis. Mas no que me diz respeito, tinha a sensação de que o que eu contava poderia chegar em outras pessoas, o que me permitia, creio eu, de manter um distanciamento deste risco emocional.

ATOM – Mais ou menos na mesma época que New Love, New Life!, você lançou uma outra série, “Pen to Chocolat” (2008, inédito na França [e no Brasil]) na qual você contava sobre os contratempos de uma autora que viu sua serialização ser cancelada. Os mangás costumam ter a reputação de serem difíceis de se fazer, mas mesmo assim, você embarcou neste projeto, apesar da sua ingenuidade [no sentido dela não ter, naquele momento bagagem propriamente]…

Youko Nemu – É óbvio que me faltava experiência para poder descrever todas as situações pelas quais um mangaka pode se encontrar. Esse foi, inclusive, O ponto complicado durante a criação da série. Felizmente, eu tinha uma responsável editorial com bastante experiência (ela tinha sido responsável por várias autoras antes de mim) para me acompanhar na escrita do mangá.

Capas japonesas de “Pen to Chocolat

ATOM – Você decidiu por não apresentar um personagem muito próximo de você…

Youko Nemu – Eu acho que contar a história de um mangaka se inspirando na própria experiência deixa as coisas mais complicadas. Então me pareceu mais justo me distanciar… Em contrapartida, a personagem principal da história é baseado em alguns conhecidos, pessoas do meu entorno, como assistentes ou de outros campos da indústria que eu. Então, reconfigurei na minha história.

ATOM – O sucesso de New Love, New Life! que te motivou a lhe dar um primeiro spin-off com “First Job, New Life!” [2009-2011] ou você já tinha uma ideia de sequência quando você começou a primeira série?

Youko Nemu – Hum… minhas lembranças não são muito claras quanto a isso… O que me lembro, no entanto, é que ao fim de New Love, New Life!, tinha a impressão de não ter conseguido desenhar tudo que eu esperava. A personagem da Momoko ficava na empresa apesar das condições de trabalho e me incomodava um pouco terminar assim. Veja bem, não queria que os leitores se dissessem que a melhor escolha era ficar fiel a sua empresa custe o que custar. É por isso que eu criei em First Job, New Life! uma personagem oposta à Momoko, isto é, uma mulher que não tinha o trabalho como sua prioridade absoluta na vida. Era um ponto de vista que eu realmente gostaria de desenvolver.

Capas japonesas de “Gozen 3-ji no Kikenchitai

“Com ‘Trap Hole‘ [2012-2014], queria desenhar uma história alegre e divertida (…). Eu parti, então, de uma premissa bem leve, mas sabe-se lá porque, o tom rapidamente se tornou mais sério!”

Youko Nemu

ATOM – A personagem que você falou é a Tamako, que inicialmente você julgou como “chata”, citando uma de suas reflexões compartilhadas no posfácio do volume 4. Em qual momento você sentiu que esta protagonista poderia, de forma definitiva, tocar o leitor?

Youko Nemu – Eu acho que perto do fim, quando Tamako confessa seus sentimentos ao seu superior e ele a rejeita. Lá, eu senti que abri uma porta que me deixava mais livre quanto à continuidade da história. Pois eu também criei um forte vínculo de compaixão entre o público e a personagem. Meus leitores e eu estávamos em um estado de espírito comum: nós queríamos apoiar a Tamako nesta provação.

ATOM – O sucesso de New Love, New Life! e de suas séries derivadas baseia-se justamente no forte vínculo forjado com seu público. Você recebeu testemunhos de mulheres que trabalhavam em uma empresa e se viram nos episódios que você contou?

Youko Nemu – Eu tive retornos nas redes sociais, comentários como “Ei, eu li este mangá e parece que ele é sobre a minha empresa!”. No entanto, quando New Love, New Life! foi lançado, o Japão estava, teoricamente, em meio a uma grande limpeza em relação às black kingyô, empresas que não respeitavam as leis trabalhistas e faziam seus empregados trabalharem em condições deploráveis. Descobri através dos depoimentos dos leitores, cujo alguns trabalhavam no design, assim como eu anteriormente, que a situação não tinha melhorado realmente…

ATOM – Você trabalhou em uma empresa no começo dos anos 2000. Acha que, vinte anos mais tarde, o lugar da mulher evoluiu na sociedade japonesa?

Youko Nemu – Eu diria que são 20 anos de raiva que se passaram desde então. Sim, as coisas mudaram e sobre diversos pontos, tenho a impressão que houve uma melhora, mas francamente, não é suficiente (ela reflete). Sabe, não trabalho mais em empresa, então não sou a melhor pessoa para lhe dizer como é o cotidiano de certos trabalhadores de escritório. De forma mais geral, constatei algumas mudanças na sociedade: depois que me tornei mãe, por exemplo, pude ver nesses últimos anos mais e mais, pais levando seus filhos à escola de manhã. Então as coisas estão se movendo um pouco, mas a uma velocidade muito relativa. Eu te disse que as coisas iam melhores, mas depois de uma reflexão, não sei se eu posso, de fato, afirmar isso. O que há de positivo é que finalmente estamos apontando os problemas. Estamos longe de os resolver, mas ao menos os assuntos estão postos à mesa. Resta, agora, enfrentá-los de forma rápida e séria…

ATOM – Trap Hole“, sua série que está em publicação atualmente na França [o mangá foi publicado pela Kana entre junho de 2023 e março de 2024], dá continuidade à temática que você explorou em New Love, New Life!. No entanto, aqui você sai do contexto estrito da empresa e demonstra um tom mais sério. Essa mudança de direção estava totalmente premeditada?

Youko Nemu – Essa é uma pergunta um pouco incômoda, porque originalmente, queria desenhar uma história alegre e divertida, na qual seguiríamos uma protagonista confrontada com as coisas mais ou menos felizes da vida. Eu parti, então, de uma premissa bem leve, mas sabe-se lá porque, o tom rapidamente se tornou mais sério!

Capas francesas dos volumes 1 e 4 de “Trap Hole

ATOM – Essa seriedade se percebe desde o começo do mangá, notavelmente quando o noivo de Haruko anuncia que está terminando com ela e a compensa com o dinheiro que ele economizou para o casamento…

Youko Nemu – Sabe, na vida, o dinheiro é um assunto que sempre surge quando a questão do casamento é levantada. E se eu amo contar histórias que tem traços de romance, também amo injetar problemáticas concretas, a fim de ancorar meus mangás em uma realidade tangível. Eu imagino que alguns casais se verão, talvez, no que eu desenhei…

ATOM – Podemos notar que em todas as capas de Trap Hole, você representou seus personagens amarrados, ao estilo kinbaku [técnica de amarrar o corpo de uma pessoa com cordas]. Por que esta escolha?

Youko Nemu – Eu tenho um pouco de vergonha em dizer, mas na verdade, não há nada de metafórico nessas ilustrações. Então não procure por um significado oculto ou uma mensagem subliminar, não há nada disso (risos)! Eu apenas achava legal colocar meus personagens assim. O objetivo era atrair o olhar do leitor com uma proposta visual forte. E eu acho que isso funcionou bem, não é?

ATOM – Podemos terminar essa entrevista evocando um de seus mangás mais pessoais: “Kimi ni Aetara Nante Iou” (2019, inédito na França [e no Brasil])? Nele, você trata sobre a maternidade, o relógio biológico e fertilidade… por que decidir abordar esses assuntos neste momento da sua carreira?

Youko Nemu – Este mangá foi o primeiro que desenhei depois do nascimento da minha criança. E imagine que por acaso eu estava grávida mais ou menos na mesma época que minha responsável editorial. Então nós tivemos diversas trocas durante nossas gravidezes e nós acabamos discutindo sobre esse momento em que, após o nascimento de um filho, de repente quase esquecendo o que vivemos antes. É um pouco como se a intensidade da maternidade viesse varrendo todas as nossas experiências passadas, você entende? Em todo caso, parecia importante para ela e para mim, documentar esse sentimento em um mangá.

Capa japonesa de “Kimi ni Aetara Nante Iou

E foi essa a entrevista! Infelizmente, poucos trabalhos da autora foram lançados na França e o entrevistador se ateu mais àqueles já publicados no país. Além disso, o último volume de um mangá da Youko Nemu lançado por lá foi em março de 2023, com o 4º e último volume de “Trap Hole”, portanto, logo fará 3 anos desde o último trabalho dela no país e ao menos por ora, sem qualquer previsão de um novo por lá… Esperamos ver mais mangás dela no país e temos três em especial que gostaríamos de ver por lá (ou mesmo aqui): o já mencionado “Kimi ni Aetara Nante Iou“; “Kocchi Muite yo Mukai-kun” (2020-2024), em 8 volumes (FEEL YOUNG), sobre um homem de 30 anos que não tem um relacionamento há 10 anos e agora, busca conquistar uma nova colega de trabalho; e, por fim, “Tabun Koko Kara Hajimaru Koi” (desde 2025), o trabalho atual da autora que está publicando na OUR FEEL (Shu Cream) e cujo volume #1 saiu no Japão em 16 de outubro. É sobre um professor solitário e uma mãe solteira.

Capas japonesas dos volumes #1 de “Kocchi Muito yo Mukai-kun” e “Tabun Koko Kara Hajimaru Koi

Esperamos, também, que a entrevista tenha criado curiosidade em conhecer mais sobre a autora e a buscar por seus trabalhos. ^^

Por fim, reitero que a entrevista está disponível no volume 25 da revista ATOM, entre as páginas 50 e 63 da edição. Até a próxima!

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