Em janeiro de 2024, a Pika Éditions começou a publicar o ainda inédito no Brasil “Welcome Back, Alice” (Okaeri, Alice) que até então, era o trabalho mais recente de Shuzo Oshimi. Em março daquele ano, o Le Figaro fez uma entrevista com o autor celebrando o lançamento do mangá. Nela, o autor explora as temáticas da obra, mas também na suas próprias dúvidas e incertezas quanto ao seu gênero. É uma entrevista interessante e que achei legal de ser traduzida, pois creio que poucos conheçam essas inquietações do autor, ainda que ele seja conhecido ao redor do mundo.
A entrevista foi feita pelo Arthur Bayon e está disponível na íntegra no site do Le Figaro.

Em “Welcome Back, Alice” [Okeri Alice], o autor de “Les du sang” [Chi no Wadachi] coloca em cena um colegial perturbado por um colega transgênero.
No colégio, o introvertido Yohei está apaixonado por Yui, mas ele não ousa abrir seu coração. Do seu lado, Yui está apaixonado pelo lindo Kei, mas este muda-se repentinamente da região. Três anos mais tarde, no Ensino Médio, quando Yohei se encontra na mesma classe que Yui, ele promete a si mesmo tomar uma iniciativa. É então que Kei reaparece, sob a aparência uma garota muito fofa: “Eu parei de ser um garoto, mas ainda assim, eu não desejo me tornar uma garota“. Yohei está, portanto, dividido entre sua atração física por Kei e seus sentimentos profundos por Yui…
O primeiro volume de Welcome Back, Alice, lançado em 10 de janeiro de 2024 pela Pika, coloca em cena o “alter ego” de seu autor, Shuzo Oshimi, que também se sente desconfortável com seus impulsos sexuais desde a adolescência. Esta abordagem altamente pessoal questiona a noção de masculinidade, bem como a identidade e expressão de gênero em nossa sociedade por meio do personagem não-binário de Kei. É um garoto ou uma garota O mangaka já levantou esta questão com “Dans l’intimité de Marie” [no Brasil: O íntimo de Mari] (disponível pela Akata), cujo protagonista acorda no corpo de quem ele ama.

Le Figaro – Poderia nos contar sobre a gênese do projeto Welcome Back, Alice?
Shuzo Oshimi – Eu tinha minhas próprias aflições, as quais eu reflito há anos. Se trata, dentre outras coisas, do meu sentimento de incapacidade, dos meus desejos e frustrações em termos de satisfação sexual, da minha falta de confiança enquanto homem e do meu desejo de ser uma mulher. Eu queria explorar esses temas em uma revista de publicação de mangá Shounen (embora o público alvo seja os adolescentes, os leitores estão, na verdade, principalmente entre os 20 e 30 anos) e, ao retratar um mangá de romance erótico neste tipo de revista, tentei desconstruir esses assuntos de dentro.
Le Figaro – No epílogo do primeiro volume, você disse “temer o sexo” e enuncia a ambição de “entender melhor” o desejo sexual dos homens. De que maneira a realização deste mangá, cuja publicação terminou no último verão [agosto de 2023], clareou essas questões? Podemos dizer que foi um exercício terapêutico no seu caso?
Shuzo Oshimi – Escrevendo esta história, eu queria decompor meu próprio “desconforto” para melhor estuda-lo. Mas eu não sei se podemos dizer que esse exercício me curou. Na verdade, longe de torná-lo mais fácil. O mangá se tornou mais e mais difícil de desenhá-lo para mim. Nesta história, Kei fala de “parar de ser um homem”, o que igualmente é meu desejo, mas eu sempre me pergunto em qual ponto é preciso parar, ou o que manter de sua masculinidade ao passar deste ponto. Talvez, em vez de chegar a uma resposta clara, o mais importante para mim fosse continuar refletindo sobre essa questão.
Le Figaro – Quando lemos “Happiness” [2015-2019], “Les Liens du sang” [2017-2023 – inédito no Brasil] ou “Welcome Back, Alice” [2020-2023], sentimentos em você um profundo interesse pelos aspectos sombrios da humanidade. Como você o explicaria, quando diz ter “medo da violência”?
Shuzo Oshimi – Eu me considero, ao mesmo tempo, carrasco e vitima. Eu ficaria mais tranquilo se fosse 100% um ou outro, mas não acho que alguém consiga fazer isso. Apesar de tudo, acho que, se desenho essas histórias, é para terminá-las com uma nota de esperança.

Le Figaro – Seus mangás sempre se desdobram no meio escolar. Quais lembranças você guarda dos seus anos escolares, notavelmente em termos de relações de amizade e amorosas? De qual maneira essas lembranças alimentam seus mangás?
Shuzo Oshimi – Foi entre meus 10 e 20 anos que descobri e cultivei os temas que evoquei até agora e que são importantes para mim. Meus pais me apresentaram a poemas, entre outros, os de Baudelaire [1821-1867; autor de “Les fleurs du mal” (As Flores do Mal)] ou mesmo as pinturas de Odilon Redon [1840-1916]. Quando eu estava no colégio, uma garota que eu gostava me apresentou os mangás de horror do Junji Ito. Nós dois éramos responsáveis pelo jornal de classe (um jornal de parede que relatava os eventos escolares etc.) e nós tínhamos feito uma edição especial sem permissão sobre o Junji Ito. Para tal, copiei uma grande ilustração de uma mulher coberta de sangue e fui reprimido por isso.

– Obrigada… Yohei!
Le Figaro – Os mangás que evocam a transexualidade tem a tendência de girar entorno da aceitação de si, da tolerância e do crescimento pessoal… Aqui, Kei parece não ter nenhum problema com sua nova identidade; é ela, na verdade, que deixa os outros desconfortáveis. Como você construiu essa personagem? Não era arriscado retratar essa adolescente trans assustadora e sexualmente dominante, quando essa comunidade é frequentemente vítima de discriminação?
Shuzo Oshimi – Kei aparece com um personagem que parece não ter “nenhum problema” com essa identidade. Mas na verdade, não passa de uma impressão. Minha intenção não era de apresentá-la como uma personagem transexual realista. À primeira vista, pode ser a impressão que ela dê. Mas eu espero que ao ler, você compreenda pouco a pouco o que ela representa.
“Podemos dizer que Kei representa tanto uma “fantasia”, como uma “aspiração”
Shuzo Oshimi
Antes de tudo, é preciso saber que a primeira parte desta série é uma espécie de paródia. Nos anos 1980, foi lançado um mangá intitulado “Stop!! Hibari-kun!” [de Hisashi Eguchi, publicado entre 1981 e 1983]. Se trata da história de uma garota bonita, que na verdade, é um garoto e que seduz o personagem principal da história, mostrando um caráter forte e independente. Welcome Back, Alice é baseado nesse cenário. Por essência, “Hibari-kun” encarna tanto as fantasias sexuais dos garotos, quanto o que eles gostariam de se tornar. Da mesma maneira, podemos dizer que Kei representa tanto uma “fantasia”, como uma “aspiração”. Esta obra é, de certa forma, uma tentativa de dialogar com essas duas noções.

Le Figaro – Você fez alguma pesquisa específica sobre a transexualidade?
Shuzo Oshimi – Pelas razões que comentei mais cedo, evitei qualquer ligação entre esta história e a experiência real de pessoas transexuais. Eu não fiz pesquisas, para além dos meus questionamentos internos. A única obra que me guiou espiritualmente foi “Un homme frigide” [“Kanjinai Otoko“, de 2005] do filósofo Masahiro Morioka [1943-]. Neste livro, M. Morioka, um homem heterossexual, investiga as raízes de sua própria sexualidade e oferece uma análise impressionante de uma sexualidade que estaríamos inclinados a desprezar. Essa obra me deu muita coragem.
Le Figaro – Yohei se sente atraído por Kei, o que o perturba profundamente. Você também queria questionar a heteronormatividade da sociedade?
Shuzo Oshimi – Mais do que levantar questões sociais, queria, acima de tudo, escapar eu mesmo da consciência normativa. Embora quisesse abandonar meu desejo sexual, sofria por não conseguir me livrar desse desejo masculino e pelo fato de minha aparência física estar reduzida ao meu pênis. Yohei é, por assim dizer, meu alter ego.
Eu sou um homem heterossexual nascido e criado no Japão, e sou considerado como parte da maioria deste país. No entanto, não consigo me integrar à essa sociedade majoritária e eu igualmente sou incapaz de me juntar a uma minoria. Como meu sentimento de desacordo é único e que eu não o encontro nos outros, só me resta criar minha própria obra.
Qual o significado esse mangá, desenhado por um japonês na França e é ele, diferente daquele que há no Japão? É uma coisa que me interessa.

– Eu não sei… eu, tudo isso…
Le Figaro – Welcome Back, Alice trata frontalmente da sexualidade dos estudantes, evocando de maneira crua a masturbação e as fantasias adolescentes. Isso foi suficiente para preocupar o comitê editorial da Bessatsu Shounen Magazine ou, mais tarde, os pais de seus leitores? Você se autocensurou ou foi censurado em algum momento?
Shuzo Oshimi – Nunca recebemos nenhuma reclamação de leitores, nem de autoridades. As normas da revista continuam regras quanto à representação (por exemplo, não representar genitálias) e eu as respeitei. No entanto, sinto ter sido autorizado a desenhar com relativa liberdade.
“A expressão “parar de ser homem” causou reações mais positivas entre as leitoras”
Shuzo Oshimi
Le Figaro – De maneira geral, como a obra foi percebida pelos seus leitores? Que retornos, positivos ou negativos, você notou?
Shuzo Oshimi – O comentário mais frequente é que Kei é fofa. Puramente visual, por assim dizer. Entrando na segunda metade da história, acho que os leitores conseguiram se conectar com o sofrimento do autor. Nós também recebemos comentários positivos por parte de pessoas transexuais. A expressão “parar de ser homem” causou reações positivas entre as leitoras. Alguns homens também afirmaram compartilhar dos mesmos conflitos internos.
Le Figaro – Você já está trabalhando em uma nova série?
Shuzo Oshimi – Em janeiro, a pré-publicação do meu novo mangá intitulado “Chi-chan” [2025] começou. Se trata de uma série curta e mais precisamente, a prequel do filme “Doku Musume“, o qual eu participei enquanto designer de personagens. A história fui eu que criei. Espero que o público do filme também leia este mangá. Depois disso, estou pensando em fazer uma outra série longa, mas ainda não sei do que ela irá tratar, nem quando ela sairá.
Como essa entrevista é do começo de 2024, vale algumas atualizações: após “Chi-chan” (ainda inédito no Brasil), em dezembro de 2024, o autor começou uma nova série na revista Big Comic Superior (Shogakukan) intitulada “Mabataki no Oto“. Ela está em andamento com 1 volume, com o 2º previsto para 30 de outubro.

Reforçamos que a entrevista disponível integralmente no Le Figaro por esse link. Obrigado por lerem e até a próxima! ^^
