A destruição familiar causada por um estupro

A Rie Aruga é uma autora tradicionalmente de demografia feminina e que fez sua estreia no começo dos anos 2010 com um mangá em volume único chamado “Oruto no Kumo kara”. Pouco tempo depois, em 2014, ela começa “Perfect World”, seu grande sucesso e sua obra mais famosa até agora. Após a conclusão de “Perfect World” no entanto, ela sai brevemente da demografia feminina e lança, em 2022, na revista Morning (Seinen) “Koujou Yakei” (工場夜景), um volume único que foi lançado na França em Agosto de 2023 com o título “Quand la nuit tombe” e é a partir dessa edição que irei falar do mangá ^^

Antes de começar a resenha, vale o aviso: o mangá trata sobre estupro e as marcas deixadas nas pessoas em decorrência dessa violência. Então tomem cuidado ao ler não só a resenha, como o próprio mangá em si!

Sinopse: “Entre o passado e o presente, descubra a vida de duas vítimas colaterais de um ato particularmente hediondo. Com a sensibilidade que a caracteriza, Rie Aruga entrega um trabalho importante.
Japão, zona industrial da região de Tokai. Takaomi e Ao são amigos desde o ensino médio. Seus amigos até imaginam que acabarão como um casal. Mas o relacionamento deles é brutalmente interrompido quando o pai de Ao, chefe de uma fábrica local, estupra a mãe de Takaomi. De repente, o mundo deles desaba. Como podemos permanecer próximos quando as ações dos adultos têm consequências tão graves?”


  • História e Desenvolvimento

“Quand la nuit tombe” coloca em cena as consequências da violência sexual, não só a parte da vítima direta do estupro, como também aqueles que estão ao redor e como essa violência é capaz de destruir vidaS ou mudar essas vidas para sempre. É muito comum que quando obras abordem o tema estupro, o foco da narrativa vai para a vítima diretamente e como esse estupro muda a vida delas e suas relações interpessoais, seja no âmbito familiar, como no cotidiano, trabalho etc., mas aqui, a Rie Aruga faz uma coisa diferente e ao invés de explorar a vida vítima, ela traz a trama para os filhos das vítimas, no caso, o foco da narrativa vai para o filho da mulher que sofreu abuso sexual, mas também para a filha do estuprador.

O que temos aqui é a história de dois jovens, Takaomi e Ao, que se gostam e que depois de marcar um encontro que deveria ser especial, ele nunca se concretiza por causa da prisão do pai da Ao, em decorrência da denúncia da mãe do Takaomi pelo estupro que ela sofreu dele. E após isso, nada nunca mais foi o mesmo para ninguém ali. O que acho de mais interessante na obra é apresentar as vítimas indiretas do estupro, no caso, a família dos envolvidos diretamente. A autora, mais ao fim do mangá, até apresenta o termo hidden victim, algo como as “vítimas ocultas”, ou seja, são pessoas que não estão envolvidas diretamente no crime ocorrido, mas que também sofrem consequências – por vezes, desastrosas – do ato.

Eu nunca tinha parado para pensar no que um abuso sexual poderia causar no entorno da família, sempre me prendi muito mais ao agressor e principalmente, na vítima. A autora vai explorando, sempre alternando entre a perspectiva do Takaomi e da Ao, como ficaram a vida dos dois. Por exemplo, ainda no começo do mangá, enquanto eles ainda estavam no final do ensino médio, a notícia rapidamente se espalhou entre os amigos e conhecidos da escola toda e o resultado disso é um olhar de estranhamento, mas também de julgamento dos outros alunos. Um momento excelente que representa bem o conceito de vítimas ocultas é quando, ao voltar para da escola, a Ao encontra o irmão mais novo chorando no quarto, porque na escola ficavam dizendo que por ele ser filho de um estuprador, ele também seria, o que deixa não só a Ao chocada como a mãe deles também.

– Na escola, me chamaram de filho de filho de tarado… Eles… eles disseram que eu também sou um tarado e que… se as meninas se aproximarem de mim, elas serão atacadas. Eles me tiraram do grupo da sala… eu não sou um tarado… não é verdade!

Tem uma cena ótima no mangá que a Ao é confrontada por dois caras e um deles assedia ela na escola, enquanto dizia que não julgava o pai dela, porque a mãe dele era muito gostosa. O que por sua vez entra naquilo de que todo homem é um estuprador em potencial e até me lembrei de uma discussão que teve no Twitter uns tempos atrás, sobre mulheres dizerem que preferiam encontrar com um urso do que a estar na mesma situação com um homem, porque o urso só a mataria, enquanto o homem a estupraria e talvez a matasse depois, o que causou uma comoção na machaiada que não entendeu o ponto da discussão.

– Ha! Com um pai assim, você deve gostar que te forcem, não?
– Não! Para… paraaaa!

Não é porque o protagonismo do mangá vai para os filhos dos personagens, que as vítimas mais diretas não ganham atenção. A autora dedica momentos a mostrar sobre como o estupro mudou a mãe do Takaomi para sempre, mostra que ela precisa de remédios, que ela vive com medo, o Takaomi tem uma irmã mais nova e a mãe teme muito que ela sofra o mesmo que aconteceu com ela e deixa bem claro que, apesar dela continuar vivendo, claramente há marcas nela que nunca serão fechadas/curadas. A mãe da Ao, por sua vez, toma um destino muito duro. Não direi o que aconteceu com ela, mas é bem chocante pela forma que ela ficou e como isso se relaciona com os olhares de julgamento que os filhos passaram no Ensino Médio. E felizmente, quem a autora deixa totalmente fora de cena é o pai da Ao. Depois da prisão dele, a autora só faz uma menção a ele, sobre como está sua vida e só. O foco do mangá vai totalmente para quem sofreu danos pelo crime do homem.

A Rie Aruga sempre foi boa para fazer dramas, desde o início da carreira com “Perfect World” e ela só foi aprimorando isso ao longo dos anos. Para um volume único, ela consegue fazer uma história perfeitamente bem amarrada e mais importante que isso, com uma mensagem muito clara e com reflexões muito importantes. O final do mangá é muito lúcido quanto ao desejo dos personagens de ficarem juntos e o que isso implica na vida deles, não só pela família, mas também pelo entorno deles, já que eventualmente esse caso será trazido à tona novamente.

“Eu sonhei com ela esta manhã… Era como uma lembrança do passado ou uma espécie de premonição”

Há quase um ano atrás, um amigo meu me mandou um vídeo de um canal ao qual ele falava sobre o quão confuso e desnecessário seriam as demografias (o vídeo se chama “Não precisamos mais de ‘shoujo’ e ‘shonen’ “, do canal Corpo Negro Mídia Branca). O vídeo tem algumas ponderações no modo de pensar até okays, mas o que quero me prender aqui é que quando vi, até fiz um longo comentário (que creio ter sido ignorado) falando sobre como se prender a idade para definir demografia é algo muito complicado, porque desde muito tempo atrás (antes dos ano 2000) isso já não era fixado (do tipo “Shoujo é para meninas adolescentes”) e nem mesmo os japoneses não se prendem tanto a isso. O mesmo vale para gêneros. No vídeo, é mencionado como “Tomie” (tem resenha no blog) é estranho ser considerado Shoujo porque é violento, é de terror e “isso não combina com garotas”, o que é uma grande mentira porque para além de Tomie ter uma abordagem que fale de misoginia e violência contra mulher, o terror e horror em si é algo muito ligado a mulheres, tanto que se você ver, frequentemente em obras Shoujo vai ter algum capítulo que fale de ocultismo ou algo do gênero.

O x da questão com demografia é que são espaços que tem certos códigos de produção. Um mangá Shounen, respira a Shounen porque ele tem jeitos de contar e conduzir a narrativa, além de desenhos que são mais característicos dele. Assim como a demografia feminina respira a dem. fem. e é um espaço muito importante por ser um espaço conquistado por elas, um lugar delas. Enfim, nesse meu comentário, eu justamente menciono “Koujou Yakei”, falo que a Rie Aruga é uma autora de demografia feminina e que embora estupro seja um tema que toque muito as mulheres, não era esse o público que ela queria conversar dessa vez, ela queria falar com homens (que são os agressores), por isso o Seinen. Eu falei isso antes de ter lido o mangá e olhe só, no posfácio da edição a autora confirma o que pensei:

Posfácio por Rie Aruga:

Eu tinha esse tema na cabeça há algum tempo e a revista Morning o aceitou. A Morning* permitiu aos seus leitores, que não estavam necessariamente cientes deste assunto a ter consciência dele.

*Morning é uma revista principalmente destinada aos trabalhadores de escritório masculinos

E sinceramente, é um bom mangá. Se serviu para tocar algum homem a pelo menos refletir sobre o assunto, acho que valeu (e muito) a publicação.

Inclusive, se alguém quiser alguma outra recomendação de mangá que trata de violência sexual, machismo e misoginia, mas dessa vez, mais focado na vítima direto, algumas sugestões são: “Sensei no Shiroi Uso“, Seinen da Akane Torikai, além de “Otona no Mondai Teiki – Sakebi”, Josei da Reiko Momochi, que aliás, é biográfico, e “Niji, Amaete yo.“, Shoujo da Kotomi Aoki, esse por sua vez, trata de vários assuntos como bullying, assédio e homofobia (um dia sai texto dele no blog).

Na ordem: “Sensei no Shiroi”, “Otona no Mondai” e “Niji, Amaete yo.”

  • A Autora

Rie Aruga debuta sua carreira profissional em 2013 com “Oruto no Kumo Kara“, um mangá de 6 capítulos lançados na revista Kiss (Kodansha). No ano seguinte, em 2014, ela começa “Perfect World“, também na Kiss, que consagra a autora como um dos grandes nomes em ascensão do mangá feminino, além de ultrapassar a marca de 850 mil cópias em circulação no Japão com a série. O mangá foi publicado até Janeiro de 2021, sendo encerrado com 12 volumes. Em Fevereiro de 2022 ela faz sua estreia no Seinen com “Koujou Yakei” (Quand la nuit tombe) na revista Morning (Kodansha), sendo concluído em 1 volume. O mangá foi licenciado no Brasil e será lançado com o título “O horizonte além da fábrica”. Por fim, ainda em 2022, no mês de Setembro, ela volta para a Kiss e estreia “Koboreru Yoru ni“, sua obra atual que está em andamento com 4 volumes. A obra ficou em 10° lugar no ‘Kono Manga ga Sugoi! 2024’ na categoria de Mangá Feminino.

Com exceção de “Koboreru”, as demais obras da autora foram lançadas na França ^^
Capas japonesas dos volumes 1 e 4 de “Koboreru Yoru ni”

  • A edição francesa

“Quand la nuit tombe” é um volume único que foi lançado na França em Agosto de 2023. O mangá foi lançado no formato 12,8 x 18,2 cm (semelhante a edição de “Perfect World” nacional), com capa cartonada e sobrecapa. Inclui páginas coloridas (que a editora comprou para ter na edição, inclusive) no começo da edição e impressas no mesmo papel do miolo. O mangá foi lançado ao preço de R$ 8,05€. Abaixo vocês veem um vídeo mostrando a edição em detalhes:


  • Conclusão

Embora “Perfect World” me soe bem abandonado/largado no Brasil e não tenha a atenção que merece, acredito que eventualmente “Koujou Yakei” seja lançado por aqui, por ser um volume único. É um mangá muito bom, bem redondo e com uma mensagem muito importante. Fica a minha recomendação para o mangá.

E se você não conhece “Perfect World”, relembro do texto de apresentação que fiz, leia nesse link 🙂

Relembro que Agosto de 2024 é o mês de aniversário de 5 anos do blog, então estamos publicando textos de animes e mangás diariamente no site ao longo de todo o mês! Fiquem atentos para os próximos posts, mas também para os anteriores que saíram. É isso e obrigado por lerem! <3


  • Ficha Técnica
  • Título original: Koujou Yakei (工場夜景)
  • Título francês: Quand la nuit tombe
  • Autora: Rie Aruga
  • Editora Francesa: Éditions Akata
  • Mês de Lançamento na França: Agosto/2023
  • Quantidade de volumes: Volume único
  • Formato: 13,1 x 18,3 cm, capa cartonada com sobrecapa
  • Papel: ???
  • Número de páginas: 200 páginas
  • Brinde da Edição: —
  • Preço de capa: 8,05 €

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