Um "conto de fadas" sobre família, compreensão e amor.

Olá! Aqui é a Selena e dessa vez trago uma recomendação um pouco diferente, saindo da animação e indo para os live actions. Essa é minha primeira analise de dorama no blog e planejo regulamente trazer outras envolvendo temas variados e que eu considere que valem a pena serem vistas.

Mas antes de adentrarmos a obra em si, para as pessoas não habituadas com as mídias orientais, o que são doramas? Respondendo de forma direta: Dorama vem de “Drama Televisivo” e são basicamente seriados ou filmes produzidos para uma emissora de TV (atualmente os streamings também produzem doramas) baseados em animes, mangás, livros, web-comics ou qualquer outra mídia narrativa, mas muitos também possuem roteiro original.

O dorama portanto, pode ter gêneros diversificados, desde comédia romântica (grande maioria) a fantasia. Isto porque o dorama é compreendido não como um drama na literal, mas como a dramatização de uma narrativa.

Exemplos de Doramas (tem na Netflix): Amor Eterno (Fantasia), Rei eterno (Fantasia Urbana) e Sweet Home (Thriler)

Agora que já foi explicado o que é dorama, It’s Okay Not Be Okay de 2020, traduzido para o português como Tudo Bem não ser Normal, é uma produção sul-coreana original financiada pela Netflix em parceria com a TVN . A obra conta com 16 episódios com 1h20min de duração cada, roteirizados por Jo Yong, que também fez Jugless. Sua narrativa é ambientada a maior parte do tempo em uma clinica psiquiátrica, então vale a pena ser vista por se configurar como uma das poucas obras fictícias que abordam a saúde mental.

A série conta a história de Ko Mun-Yeong, uma escritora bem sucedida e extremamente popular de contos de fadas infantis, mas que esconde de seu público seu Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA). Ou seja, ela é literalmente uma bomba-relógio ambulante, uma pessoa totalmente impulsiva, violenta, egocêntrica, desagradável, que não sente remoço em magoar ou machucar outras pessoas, com zero noção de sutileza, mas que apresenta um desejo intenso por afeição. Também temos o cuidador, Moon Gang-Tae, que trabalha em uma clinica psiquiátrica e não tem tempo para se relacionar e construir laços por muito tempo com outras pessoas por cuidar de seu irmão mais velho, Sang-Tae, que possui Transtorno de Expecto Autista (TEA ) e também apresenta quadro de Estresse Pôs Traumático  (TEPT) de um evento ocorrido no passado.

Os três personagens cruzam caminhos, precisando enfrentar seus medos e fantasmas do passado para poderem seguir em frente, e terem um recomeço verdadeiro.

Post de Divulgação da Série na Netflix

Retirando os problemas envolvendo clichês de obras orientais, como todo mundo se conhecer desde a tenra infância (Tudo bem, é legal a parada de amigos de infância ou você reencontrar um amigo do passado, mas já deu, né Coreia? Todo mundo do elenco principal se conhecer é tenso) e a gravidade aparentemente não funcionar como deveria nas escadas (Sério irmão, você fazer um ângulo de 45 ° com seu corpo e não despencar como uma maçã podre, é um tanto…irreal?), a trama é bem escrita, bastante delicada e responsável no que tange o desenvolvimento psicológico de seus personagens, e não trata nenhum dos transtornos abordados na série de forma banal. Cada um dos problemas é retratado com a sensibilidade e compreensão que eles merecem ter.

Compreensão é a palavra chave desse dorama. Ele tenta transmitir o que o titulo dele diz, não importa se uma pessoa é diferente por infinitas razões que possam levá-la a ser um ponto fora da curva. Está tudo bem. O que importa é a personagem ser ela mesma, encarar seus problemas e as outras pessoas de frente. Basicamente é uma serie sobre aceitação de si próprio e do outro, de se colocar como ouvinte e apoio para uma pessoa por mais problemática que ela seja, de criticá-la e repreendê-la quando necessário, mas de tentar ver como ela ver o mundo e não achá-la incapaz por suas limitações, pois ela pode florescer, crescer e se desenvolver.

E apesar de ter 90% por cento do foco narrativo no trio principal (Mun-Yeong, Gang-Tae e Sang-Tae), os episódios pincelam em momentos pontuais os pacientes do hospital psiquiátrico, trabalhando com carinho estes personagens que apresentam problemas diversos desde alcoolismo a episódios de mania, ressaltando a complexidade humana. E que aqueles que chamamos de anormais ou malucos, são indivíduos que merecem cuidado e atenção, como qualquer outro. São pessoas com as quais podemos nos identificar.

Os pacientes também possuem camadas que podem te fazer chorar

O diretor do hospital , o psiquiatra Oh Ji Wang, faz um excelente trabalho representando um profissional da saúde mental que realmente ama o que faz e se compromete com o bem estar de seus pacientes. Ele genuinamente se preocupa. Às vezes até brinca e rir com eles. Procura entender e criar um vinculo de confiança antes de prescrever qualquer tratamento, atuando realmente como um bom terapeuta que está ali para ajudar o trio principal quando eles requisitam de seu oficio.

Para completar o cenário e elenco de apoio da série, contamos com o amigo grudento e super gente boa dos dois irmãos, Jo Jae-su , o CEO e editor de Mun-Yeong , Lee Sang-in, junto da sua assistente, Yoo Seung-je e a amiga de infância de Gang-Tae, Ju-ri. Todos possuindo algum papel dentro da trama, desde o fornecimento de algum alivio cômico a situações de reflexões importantes.

Agora retornando as estrelas do show, começando pela protagonista feminina, Ko Mun-Yeong. A escritora é uma personagem completa que não se resume apenas a ser o par romântico de Gang-Tae. Ela é cheia de camadas. Aparenta ser forte, mas no fundo é bastante carente de amor e afeto verdadeiros.

Ela devolve o que falam pra ela porque isto dói e irrita ela, não apenas pra manipular

Por causa de seu transtorno, ela tem dificuldades em entender outras pessoas e diversas vezes realmente não tem interesse algum em entender os sentimentos alheios, o que dificulta a mesma estabelecer laços afetivos. Basicamente, mesmo quando ela não quer, acaba magoando e ferindo o outro, porque não consegue ver o que há de errado em seu comportamento. Como ela tem uma baixa empatia, não vai se sensibilizar em manipular e machucar alguém para beneficio próprio. Entre suas principais características, se destacam a impulsividade e a inconsequência. Ela faz qualquer coisa para conseguir o que quer.

No entanto, apesar de ser uma pessoa facilmente categorizada como desagradável, Mun-yeong consegue se importar e se magoar com as pessoas que ela considera importantes e sua potencial família. No que tange o protagonista, ela é bastante esforçada em tentar interpretar o que ele quer e suas emoções. Seu TPA tem aspecto socioambiental. Apesar de Gang-Tae inicialmente falar que ela nasceu assim, a personagem traz traumas fortes da infância, pois é assombrada pela presença de sua mãe possessiva e pelo pai que tentou assassiná-la quando jovem, o que lhe agrega além do problema de personalidade, episódios de crise de pânico e paralisia do sono para ajudar no dia a dia.

As crises dela são bastante realistas e externam o pavor da mãe possessiva

Enquanto o protagonista masculino Moon Gang-tae, o cuidador, aparentemente é normal e não apresenta nenhum transtorno , mas até mesmo os ditos normais, tem suas anormalidades. Mun-Yeong é uma pessoa que veste a armadura de estar tudo bem para esconder suas feridas internas. É um personagem extremamente sensível, sendo uma pessoa que reprime o que sente e o que quer, muito machucada, culpada e que carrega o peso de ser o único responsável por seu irmão mais velho. Sua vida se resume a Sang-tae, porque ele é a única família que possui e as palavras de sua mãe no passado impactam em suas ações e decisões no presente.

Gang-Tae aborda bem os fardos da responsabilidade, onde por determinadas circunstâncias, um dos filhos acaba abrindo mão dos próprios sonhos e desejos em prol de cuidar de outra pessoa, muitas vezes para ajudar os pais a administrarem a casa ou para ajudar o irmão mais novo, esquecendo de si mesmo. Eu conseguir ver muito da minha irmã nele já que por muito tempo ela sacrificou seu sonho de ser pedagoga para trabalhar e ajudar meus pais, posteriormente, a própria família. O que sou eu devo muito a ela, pois ela que proporcionou que eu estudasse.

´Gang-Tae consegue ser um personagem com tantas camadas quanto Mun-Yeong

Assim como é colocado na sinopse, o senso de dever e dedicação total a Sang-tae impacta no relacionamento de Gang-tae com outras pessoas. Ele não se dar tempo de poder vivenciar o amor ou de se ligar profundamente as outras pessoas, porque vive em constante mudança por causa do trauma do irmão.

Contudo, a sua recusa ao interesse amoroso que Mun-Yeong desperta por ele também estar ligado ao transtorno da protagonista. Ele é um dos personagens que possuem conhecimento do TPA da escritora, portanto tem noção que qualquer relacionamento com ela seria muito problemático. Praticamente seria uma carga mental muito grande para ele, já que este assume o papel de pai e mãe de seu irmão e não se veria como um namorado dela, mas como uma babá. Como ela mesmo coloca para ele, é o seu pino de segurança que evita que a granada exploda.

No entanto, apesar da historia do casal ser envolvente, a cereja do dorama é Sang-tae, o irmão autista de Gang-tae. O personagem conseguiu passar com naturalidade e de forma orgânica os problemas de um autista, as suas dificuldades e os preconceitos sofridos. Por causa do transtorno, ele tem problemas em se expressar e de entender o mundo da maneira como os outros compreendem Às vezes não sendo bem interpretado nem pelo próprio irmão que o ver como alguém que sempre será totalmente dependente dele.

Sang-Tae é o melhor personagem e quem dizer o contrario, só está errado XD

Sang-tae passa por um arco de superação. Primeiro do seu trauma de borboletas desenvolvido durante a infância por presenciar um evento traumatizante e segundo, por se libertar de suas amarras e dependência do irmão mais novo. Ele se torna senhor de si mesmo, percebendo que pode sonhar e almejar algo, o que lhe é conferido pelas influências e convívio com Mun-Yeong.

Inclusive a amizade de Sang-Tae e Mun-Yeong é uma das coisas mais belas dessa obra. Inicialmente ela atrai Sang-Tae por causa de seu interesse em seu irmão, Gang-Tae. Contudo, a escritora é a primeira pessoa a acreditar genuinamente no seu talento para ser um ilustrador, tratá-lo como um ser humano independente e capaz, além de desenvolver respeito e afeto por ele como parte necessária de sua família.

Admito abertamente que esta cena me fez derramar uma lagrimazinha

Eu ri muito com a interação dos dois. É muito divertida e engraçada. Uma das partes que eu mais gosto é quando Sang-tae fala que ela não é da família, já que não tem o mesmo sobrenome. Incomodada, a protagonista tenta definir o que é família, mas ela também não sabe muito bem o que é.

O roteiro consegue manter o espectador preso a trama mesclando romance, mistério e suspense, com cada episódio se fechando em si próprio, mesmo que haja uma progressão contínua dos eventos, não deixando nenhuma pergunta para ser respondida ou solucionada de última hora. Todas as respostas são dadas e fornecidas em tempo hábil.

Devo admitir que só não dei 10/10 para esta produção, porque apesar de ser um roteiro razoavelmente conciso e bem escrito, ainda senti que faltou um desenvolvimento mais detalhado para alguns personagens de apoio que deveriam ser chave no enredo, em especial a Ju-ri e o Lee, editor da Mun-Yeong. Ambos, apesar de serem peças importantes para os protagonistas da série, só aparecem quando é conveniente e possuem muito pouco tempo de tela para entendermos e desfrutarmos melhor a relação deles com o casal.

Seria a Mun-Yeong uma aprendiz da Nazaré Tedesco? Minha filha controle-se!!!

Outro fator que não me deixou dar um 10/10 é a própria Mun-Yeong, que apesar de ser uma personagem com várias faces e extremamente interessante, senti falta de tocarem mais clinicamente no transtorno que ela sofre. Vemos as consequências dela ter aquele tipo de comportamento: ela lesa financeiramente o editor, cria problemas para o Gang-Tae, não consegue se controlar direito e quando ver, já fez a merda. Em suma, em muitas situações, ela mesmo causa a própria magoa.

Então vejam só, se alguém suborna ela com o fato dela ter TPA, é porque claramente possui um laudo psiquiátrico atestando o quadro, correto? Então seria interessante mostrarem além do trauma, ela de alguma forma tendo acompanhamento psiquiátrico, porque ela é uma escritora e isto impacta na profissão da personagem, ou com o próprio Gang-tae, com qual ela demonstrou afeição já que transtorno de personalidade é algo eterno e ela vai ter que lidar com ele até a morte.

Mas apesar disso, a direção do dorama é muito boa, sabendo encaixar perfeitamente momentos de comédia ou tensão sem quebrar com o clima da narrativa, com todo o episódio acontecendo algo realmente importante em relação as personagens. Não teve nenhum evento vazio ou sem significado e tudo que transcorreu durante os episódios é essencial para a compreensão da história. As cenas possuem uma ótima fotografia, com cenário e figurino que complementa a belíssima atuação das personagens. Dando destaque ao Castelo Amaldiçoado, a casa da Mun-Yeong, que possui uma estética elegante, mas igualmente sombrio, casando bem com o tom da serie e da protagonista em si.

Acho que eu também teria medo e pesadelos morando em um lugar sinistro desses

Em relação aos figurinos, é interessante notar as roupas da Mun-Yeong. O estilo como as paletas de cores mudam de acordo com o psicológico e fase da personagem. No inicio (ou quando está emocionalmente instável ou depressiva), ela usa roupas mais extravagantes e pesadas com tons mais escuros como o roxo. Com o decorrer da sua evolução enquanto interage com os irmãos, as roupas vão se tornando mais leves e ela passa a usar cores mais claras como o rosa e o bege.

Quanto a arte e design, o dorama é esteticamente bonito, apresentando um tom sombrio com toques de fantasia. Os episódios são nomeados por contos de fadas e fazem metáfora ao conteúdo da historia que é bem amarrado a moral deles. A abertura é elegante e apresenta referência aos contos e elementos da trama em si.

Todo o conjunto apresentando tem uma ludicidade que casa bem com a temática da série. Inclusive, a introdução em stop motion que expõe a premissa da história e as ilustrações dos livros da Mun-Yeong, foram uma adição certeira a construção da obra como um verdadeiro “conto de fadas moderno”.

Enfim, Tudo Bem Não ser Normal é uma obra encantadora que aborda a saúde mental de uma forma sensível e sem estereótipos. A série traz conteúdos densos que são emocionalmente bem explorados, um enredo envolvente e uma atuação incrível dos atores. Com toda a certeza é um dos doramas que mais me tocaram e uma das obras de melhor qualidade de 2020. Eu recomendado sem medo para pessoas que gostam de romance e histórias que buscam incitar a reflexão e dão um calorzinho no coração.

Trailer

Extra

A Editora Intrínseca trouxe para o Brasil a coleção de contos de fadas da Ko Mun-Yeong apresentados na série. Cada livro possui uma história sensível e cheias de significados, sendo uma obra de arte completa. Todos são capa dura e estão a venda na Amazon por volta de R$ 40-45 reais. Eu recomendaria comprarem Criança Zumbi, que é a história com carga emocional mais forte da coleção, mas se puderem ter todos, são contos muito bem escritos.

1 thought on “Tudo Bem Não ser Normal – Um “conto de fadas” sobre família, compreensão e amor

Deixe um comentário