Polish_20220725_153443137
15 anos depois, "1945" está de volta e continua muito importante e necessário.

“1945” foi o primeiro título lançado pela editora NewPOP, tendo sido publicado em 2007. Em meados de 2015, a editora chegou a anunciar o relançamento do mangá. Passaram-se anos, mas isso nunca voltou a ser pauta dos assuntos que a NewPOP divulgava. Até que em 2021, a editora reforçou que iria relançar a obra, tendo como estimativa fazê-lo em 2022. Pois bem, chegamos em 2022, e não só a obra enfim foi publicada novamente, como ela inaugura o Selo Sakura, selo voltado para a publicação de mangás Shoujo e Josei!

“1945” é um mangá Shoujo de Keiko Ichiguchi. Foi publicado em 1997 na revista Amie, da editora Kodansha. e feito pela autora enquanto ela estava na Itália, local onde vive até hoje. Em colaboração com a Kodansha, não só nasceu “1945”, como também surgiu “America” (também publicado em 1997), volume único, que foi igualmente lançado na revista Amie. Eu espero que venha para o Brasil futuramente (particularmente já acho um crime não ter sido lançado pela editora AINDA).

Coleciono mangás desde a metade de 2017, e passei a me inteirar do mercado nacional de mangás no começo de 2018. Desde 2018, sei da existência da obra, e que já estava esgotada há anos. Sendo assim, nunca tinha tido a oportunidade de ler e só me restava ver os vários comentários elogiando a história do mangá. Obviamente não poderia perder esse relançamento de forma alguma. Aproveitando que estava no Anime Friends 2022, local onde ocorreu o pré-lançamento, adquiri o volume e agora venho comentar um pouco do mangá ^^.

Sinopse: ” ‘Quem são aqueles? Não sabem o que há debaixo da neve? Aqueles que agora jazem sepultados eram homens… Mas será que eram mesmo? Talvez não tenham dado nem mesmo um grito. Aqueles que estão correndo por cima dos cadáveres… São eles os humanos?’ “


  • História e Desenvolvimento

Em um determinado episódio do anime “Yuukoku no Moriarty” (Moriarty the Patriot), está acontecendo uma festa entre nobres e em dado momento, um desses nobres é envenenado, caindo morto no chão. Há um choque inicial, mas em seguida, todos os convidados voltam a dançar, como se nada houvesse acontecido. É uma situação com um contexto diferente para uma abordagem distinta, mas que consigo traçar um paralelo com o que a Elen, protagonista da história de ‘1945’, tenta fazer e que reproduz uma certa tendência social: enquanto aquele problema não te afeta, você quer ignorá-lo, ou se convencer que não é da sua conta, e que está tudo bem. O mangá começa um pouco antes da 2ª Guerra Mundial estourar. A Alemanha nazista já está fazendo seus movimentos internos, há bandeiras e uniformes do partido sendo distribuídos, as organizações para jovens já estão em vigor, porém ainda não são obrigatórios e existe um certo clima de tensão no ar. Quando a guerra estourou de vez, a Rosa, que é amiga da Elen, é levada pelos nazistas para um campo de concentração, o que causa dor na Elen. Porém, naquela mesma ocasião, ela reencontra o Alex (ela o chama de Alec), que faz parte da “juventude hitlerista”, seguindo as ordens do exército, e é uma paixão da Elen de anos atrás. Ela rapidamente se prende a esse amor, a comodidade e o conforto que seu amado traz para a protagonista esquecer dos problemas externos. Em uma passagem do mangá, é dito que os salões e as festas continuavam a acontecer e, dessa forma, quem era mais alheio à essa situação, ou seja, quem se encaixa no ideal tratado pelos nazistas, tirava o peso de seus ombros seguindo com suas vidas, fechando os olhos para o entorno.

Não muito distante dali, o Max, irmão da Elen, era um universitário e militante contra o governo nazista. Até então, ela era mais indiferente ao que estava acontecendo, embora tivesse alguns receios por causa de sua melhor amiga ser judia. Em um dado momento do mangá, quando a guerra está em um estágio mais avançado, vemos o Max no conflito, servindo ao exército Nazista por obrigação. Naquele ponto, homens eram obrigados a se alistarem e ir para o confronto. Importante dizer que ele não deixou de ser contra o governo, pelo contrário. Foi se tornando um crítico mais fervoroso, porém ele tinha que ir para lá, afinal, o que ele poderia fazer? É um serviço obrigatório e até certo ponto, morrer ali não contribuiria em muita coisa. Como o personagem diz, ali vai muito da sua sobrevivência. Ele não era nazista, mas aos olhos do outro lado, não havia essa distinção. E o mesmo vale para quem estava na União Soviética, na França, etc. É lutar pela sua sobrevivência.E a outra peça fundamental nessa história é o Alec, que como dito, é a paixão da Elen e que há uma reciprocidade. O lado dele acaba sendo o mais interessante da história ao meu ver, e acompanhamos boa parte do miolo da história na perspectiva dele. No background do personagem, sabemos que ele nutre um ódio muito grande pelos judeus, por um motivo que não vou dizer aqui. Mas o que posso descrever que esse ódio é tão grande, que ele vai para o exército de vontade própria, com a intenção de exterminar o povo judeu. Antes de prosseguirmos, acho válido trazer um pouco de contexto histórico: antes da ascensão de Hitler e consequentemente, do nazismo, é importante dizer que havia um mal-estar na Alemanha. Quando a 1ª Guerra Mundial terminou em 1918, o país saiu como a grande culpada do conflito e não só isso, como contraiu uma dívida milionária por causa do Tratado de Versalhes, em que dentre outras coisas, precisavam “indenizar” os países europeus, o que resultou em uma crise nacional sem precedentes. Isso foi de extrema importância para o nazismo chegar onde chegou, pois ele surge com a ideia de supremacia, aliado ao discurso do Darwinismo Social. E não somente isso, Hitler não teria alcançado seus objetivos (talvez não tão rápido) se não fosse o antissemitismo perpetuado na Europa ao longo de séculos, seja de forma agressiva ou sutil, em especial nas histórias infantis contadas às crianças e propagadas de geração para geração. Há uma série de fatores, incluindo esses que mencionei, que servem como uma escada a ser trilhada. Quando o partido de Hitler conseguiu chegar ao poder, ele tinha menos de 40% de aprovação do eleitorado, mas foi o suficiente para se instalar lá. A propaganda é de extrema importância para a disseminação desses ideais e ir instaurando a ideia de superioridade, assim como o ódio aos judeus (o que não era tão difícil assim graças ao antissemitismo), junto com o rancor contra os países europeus que colocaram a Alemanha naquela situação, e um saudosismo do “período de glória alemão”.

A Juventude Hitlerista (voltado para os homens) e a Liga das Moças Alemãs (para mulheres), entram nessa como um recurso para reforço dos ideais nazistas. Por mais que a parcela adulta, principalmente de quem era mais velho, seja importante, a juventude é um ponto chave, pois são eles quem serão o futuro. Se você não renova esse público, seu ideal não se renova. Sabendo disso, foi criado esses dois sistemas, que no caso dos homens, ainda serviam como treinamento militar, e no caso das mulheres, uma forma de ensiná-las a serem boas esposas. E como é dito no texto de apoio presente na edição de ‘1945’, não se tratava meramente de obrigar e controlar as pessoas, mas sim de propagação e convencimento de aderir ao que estava sendo pregado. Com o tempo, o pensamento vai se integrando e naturalizado, ao ponto de ter sido ‘propagado sozinho’. Não fazer parte desses dois movimentos do governo por si só já era um indício de que aquela pessoa poderia ser um daqueles que lutavam contra o governo.

Mas voltando ao Alec, é formado na cabeça dele: “tudo é culpa dos judeus”. Pode parecer um pouco absurdo falar dessa forma, mas quando você consegue criar um consenso sobre o que pode ser um problema, fica fácil direcionar ódio para ele. Você cega as pessoas e elas não conseguem olhar para o todo, incapazes de ver ao redor e perceber qual é a raiz do problema realmente, tornando muito mais fácil culpar alguém, ou grupo de pessoas por tudo de ruim que acontece. Por exemplo, no caso do nazismo, além dos judeus que viraram alvo graças ao antissemitismo, os nazistas ainda perseguiram negros que tem um longuíssimo histórico de perseguição por causa da Europa, e de homossexuais que igualmente eram perseguidos, só que no caso, principalmente por causa da Igreja que conseguiu disseminar (à nível mundial) que é pecado e precisa ser condenado. Disso, também passamos a entender algumas nuances que vão sendo trabalhadas ao longo do mangá e que mais ali da metade para o final, teremos personagens se perguntando o porquê de estarem fazendo aquilo, em nome de quem, se era considerado justo fazer aqueles atos em nome de uma ideia que era pregado como certo e se tamanha atrocidade era justificável contra alguém que sequer tinha como se defender.

Nesse ínterim, quando o Alec demonstra esse ódio, é muito de um efeito social construído para tal. Claro que ele está errado e a autora demarca muito bem isso, porém ela traz esse questionamento e essa dúvida entre aqueles que têm ao menos um pouco de discernimento e não estão ali por uma disputa de poder ou interesses. Discursos ultra nacionalistas tendem a vir com um forte viés político (“O Brasil não pode virar uma Venezuela”). E nesse cenário de guerrilha, ele vai cumprir um papel de que você está lutando pelo seu país, por sua autonomia, entre outras coisas. Nada mais é do que você lutar pelos outros, por uma defesa de interesse de terceiros, estes que sequer verão o campo de batalha e o terror da guerra, não somente para quem está ali, como para quem está do outro lado. E a autora traz um questionamento (o que vimos na sinopse), se aqueles que estão massacrando judeus e os torturando, são seres humanos. Afinal, o que aquelas pessoas fizeram? E mesmo que fizessem algo, eles têm esse poder de julgar? Quem são aquelas pessoas? O que faziam? Qual a história delas? Quantos laços, famílias e amores não foram desfeitos, destruídos por tal crueldade?

A autora trabalha com esses 3 personagens nessas linhas de pensamentos, inicialmente bem diferentes entre si: A Elen no momento que a guerra começa, tenta fechar os olhos para a realidade, se prendendo a um ponto que lhe serve como segurança; o Max é muito bem resolvido com aquilo que pensa, sempre contra a tirania do governo, e a medida que o tempo passava, se mostrou cada vez mais mais crítico a ele; e o Alec tem seu ódio aos judeus e está lá, servindo àquele governo por vontade própria, embora tenha suas dualidades. Esses caminhos vão se cruzar e se separar em diversos momentos no antes e durante a guerra, sendo interessante ver essas transições e o quão mudado esses personagens ficam ao longo dos anos. O espaçamento de tempo que o mangá ocorre é tão curto relativamente, mas se tratando de um período caótico de guerra, de apreensão por não saber o que pode acontecer amanhã, a própria questão de sobrevivência, o desgaste emocional que tudo isso traz, é tão vívido e provoca mudanças de uma forma mais rápida, e até efervescente.


“1945” é, portanto, uma história trágica. Daquelas que trazem uma mensagem que não deve ser esquecida. Do horror, do caos, da tragédia e todas as consequências causadas pela guerra. Era de desejo de todos nós (ao menos é o que espero) que lêssemos esse mangá e o víssemos como algo estritamente do passado e que nunca deve ser repetido, ficando como lição para que nunca venha a acontecer de novo. Porém não é o que vemos em escala global. Grupos neonazistas estão sendo formados e pior, se tornando mais frequentes e com menos receio de se mostrar em público. A extrema-direita segue avançando no mundo, a exemplo da Polônia, que inclusive, está passando por um grande processo de retrocesso em questões humanitárias, incluindo direitos de pessoas LGBTQIA+. No Brasil mesmo, a figura de Bolsonaro é uma demonstração disso, e não somente, como a maneira que cada vez mais militares (os que mais se beneficiaram com a ascensão de Bolsonaro) ocupam cargos no poder, distorcendo do que foi a Ditadura Militar, sem esquecer das constantes ameaças e flertes com golpe que fazem frequentemente. Algo que não deveria se repetir, está sendo flertado, e presente ali, crescendo pelas bordas (ou nem tanto), esperando um momento oportuno para voltarmos para esse passado sombrio. O ciclo se repete e diante dessas e tantas outras demonstrações, “1945” se mostra extremamente necessário. O nazismo, infelizmente, não está morto. Esses sistemas são perversos, vão se construindo aos poucos, por debaixo dos panos. Eles não são rígidos e se adaptam, se moldam, e se adequam a cada período, esperando o momento perfeito para ressurgirem com força. É preciso tomar muito cuidado e estar atento a esses movimentos para que o que vemos nos livros de história, não volte a se repetir mais uma vez.


  • Arte

Eu sou um grande fã e entusiasta do mangá Shoujo, seja em termos narrativos, como do visual, e tudo que envolve a montagem e características da demografia. A estética do Shoujo dos anos 70 que a autora utiliza aqui, não só combina muito bem, como acho lindo. A maneira de desenhar as feições do rosto e cabelo são especiais, ao meu ver. Não sei explicar exatamente, mas me traz uma impressão tão maravilhosa, agradável, fofa e ao mesmo tempo, carregada de sentimentos, que me fascina realmente. E se tratando de um mangá que retrata um período histórico, a arte do mangá agrega muito ao título. Tem páginas lindas e a quadrinização, com páginas inteiras ou quadros na vertical, formam composições primorosas!


  • A edição nacional

A nova edição está sendo publicada no formato 15 x 21 cm, capa cartonada com orelhas, tem 152 páginas impressas no papel Pólen Bold. O mangá não possui páginas coloridas e tem preço de R$ 32,90. De forma geral, gostei muito do que foi entregue na edição. Tirando a capa que eu tenho um sentimento de decepção, pois foi uma grande reciclagem da antiga edição. O mais natural de se esperar, é que fosse feito algo novo para a republicação. É tipo o que provavelmente um pessoal sentiu com a nova edição de “One Piece” pela Panini, que também estão reciclando as capas originais. Sabe, trazer um frescor… algo novo…

A tradução em si está boa. Eu li o mangá no ônibus, enquanto ia para a Universidade e foi bem tranquilo. Só tive que fazer algumas pausas por causa do tema e porque estava fazendo anotações para escrever esta resenha. Fora isso, no final de uma das páginas do texto de apoio, tem um parágrafo que o espaçamento entre as palavras diminuiu de forma bizarra e fica parecendo que não tem espaço algum, dificultando a leitura. Não sei o que realmente aconteceu ali, mas me pareceu que queriam fechar o parágrafo naquela página, daí encolheram o espaçamento.

E gostaria de aproveitar esse espaço e chamar atenção para a Valéria Fernandes, dona do Shoujo Café, que participou dessa edição como revisora e escreveu o texto de apoio da 1ª edição do mangá no Brasil. A Valéria é doutora em História pela Universidade de Brasília e o que ela escreveu ajuda muito para uma maior compreensão dos assuntos abordados, ainda mais que vemos um conflito da guerra que normalmente não é trabalhado nas escolas de forma devida. O mangá também tem artes e esboços originais como material extra, além de ter compilado uma entrevista com a autora, feita pela editora e lançada em 2007 na revista Neo Tokyo. Também vale a pena conferir ^^.

Só achei triste que a logo do Selo Sakura ficou só na 4ª capa. Não entendi a razão de não dar destaque para a logo do selo. Na capa até vai, mas nem na lombada do volume o selo está :/


  • Conclusão

Reitero tudo que elogiei no texto e faço uma recomendação fortíssima de “1945”! Ótimo mangá para todos lerem, incluindo quem não é muito do meio de mangás e gosta de aspectos históricos. E sendo volume único, só colabora para tal.

Ótimo que a editora está relançando e eu espero muito que eles saibam aproveitar essa oportunidade para divulgação devida. Apesar de ser um relançamento, foi um ótimo título para inaugurar o Selo Sakura e espero que mais obras excelentes sejam lançadas nele (considerando que vamos ter “Perfect World“, “Ohayou, Ibara-hime“, “Honnou Switch” e outros. Dá para botar fé no selo, desde que a editora saiba divulgar o selo devidamente).


  • Ficha Técnica
  • Título original: 1945
  • Título nacional: 1945
  • Autora: Keiko Ichiguchi
  • Serialização no Japão: Amie
  • Editora japonesa: Kodansha
  • Editora nacional: NewPOP
  • Quantidade de volumes: Volume único
  • Formato: 15 x 21 cm, capa cartonada com orelhas
  • Quantidade de páginas: 152
  • Papel: Pólen Bold
  • Preço de capa: R$ 32,90
  • Compre em: Amazon/Loja NewPOP

Deixe um comentário