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Da hipocrisia dos adultos a constante solidão, mas também uma carta sobre a amar a si mesmo.

Olá, pessoal! Como já repetimos algumas vezes em alguns textos do blog, Agosto de 2024 é um mês para lá de especial para o blog, isso porque o blog está completando 5 anos em 14 de Agosto e para comemorar (e tirar um pouco do longo atraso), estarei publicando uma resenha por dia no blog durante o mês, além de reviews de animes (essas alternadas entre textos meus e do @rubnesio). Para a resenha de hoje, irei falar de “Monstrophobie”, um mangá que não foi publicado no Brasil – foi lançado na França – e que foi uma leitura linda, divertida a certa altura e avassaladora, então resolvi fazer resenha para o blog ^^

“Monstrophobie” foi lançado no Japão com o título “Kaiju ni Natta Gay” (怪獣になったゲイ). É um mangá escrito e ilustrado por Minamoto Kazuki. O mangá nasceu, na verdade, como uma série de doujinshis que o autor foi publicando de forma independente, até que o trabalho foi notado pela editora Enterbrain e lançado sob o selo da revista Comic Beam. Foram 10 doujins compilados em um único volume de quase 260 páginas. A obra foi anunciada na França em 10 de Julho de 2023 e lançado em Setembro do mesmo ano. Eu adquiri o volume logo no lançamento, mas só consegui ler ele em Junho de 2024, época em que escrevo esse post.

Sinopse: “Por ter uma pele mais escura do que a maioria dos japoneses, Arashiro sofre bullying no ensino médio. No inferno diário que vive, seu único apoio é o Sr. Kuroda, um professor que o incentiva e apoia. Mas um dia, o adolescente ouve seu professor dizer a um colega que os gays lhe dão nojo. Profundamente chocado, pois sendo ele próprio homossexual, o estudante do ensino médio não sabe mais como se comportar. Desesperado, ele tenta acabar com sua vida, mas ocorre um estranho fenômeno: ele se transforma em um monstro (kaiju)! A partir daí, ele se sente invencível, pronto para retribuir o favor a todos aqueles que o machucaram e para denunciar a hipocrisia dos adultos. Porém, uma questão permanece: será que ele conseguirá se tornar humano novamente? E de qualquer maneira, ele realmente quer isso?”


  • História e Desenvolvimento

Além do título original e da adaptação do título para o francês (ótima, por sinal), o mangá também conhecido pelo título internacional em inglês: “The Gay Who Turned Kaiju” que em tradução literal seria “O Gay que Virou Kaiju”. Kaiju, para quem não sabe, é um termo usado para se referir as criaturas e monstros japoneses, especialmente os monstros gigantes (vide “Godzilla”). O que temos aqui, como o título sugere, é a história de um garoto que por causa da exaustão do bullying e depois de descobrir que a única pessoa que ele tinha carinho e servia como “a luz no fim do túnel” é homofóbico, tenta cometer suicídio e no entanto, acaba se tornando um monstro/kaiju sem explicação aparente.

Algo interessante logo de cara é que ser um monstro deu força e tirou o medo do Arashiro de ser quem é, ao mesmo tempo que lhe deu coragem para enfrentar e aterrorizar seus assediadores, já que agora, a situação mudou: eles que tem medo dele, não o contrário. Para ele, e acho que um pouco para todo mundo que já sofreu homofobia (ou algum tipo de violência) e nutre pensamentos de sentimentos e de raiva da época de escola, há um certo prazer/sadismo em ver quem nos maltrata sofrendo na mesma moeda, tem passagens reflexivas do protagonistas que são ótimas. O personagem acaba sendo muito consciente do que acontece a sua volta e dos motivos por de trás das ações das pessoas com ele, então certas aproximações, ele consegue ver que tem um fundo de interesse, da mesma forma que ele faz o mesmo com um certo personagem, quando ele lhe estende a mão, apenas para ter um ar de superioridade e ver quem um dia lhe agrediu, precisando recorrer à ele, ou mesmo a relação de que as pessoas fingem que nos tratam como iguais, quando na verdade, mantém certa distância (ou mesmo um ar de pena) por causa de, nesse caso, orientação sexual.

Além do Arashiro e um outro personagem, o 3º pilar dessa história é o professor Kuroda, que acaba por ser o grande estopim de onde a história parte. A obra mostra essa hipocrisia do professor – e dos adultos em si – em ter uma falsa preocupação com os alunos, meio que para sair como o herói da cena, mas são eles mesmos os primeiros a empurrarem os alunos ladeira abaixo, ou os abandonar quando é incômodo. O professor é um personagem muito interessante, porque o tempo todo ele alterna entre uma faceta lega e outra deplorável e é mais ou menos assim que acontece na vida real, quer dizer, “ninguém” é um merda o tempo todo, 100% do tempo e o autor elucida isso. Há um lado de preocupação pelo Arashiro, que as vezes soa como falso e mais como uma obrigação misturado com a vontade de sair como um herói, mas também há momentos de ações mais genuínas da parte dele, mas isso não quer dizer que ele seja ‘bom’ ou ‘mal’ (em essência), na verdade, o que ele vende é uma impressão de bom para as pessoas (o “cidadão de bem”™), quando na verdade, ele está sendo completamente destrutivo para um de seus alunos.

– Não… é só que você é mesmo ignorante
Vamos… não fique com essa cara de surpreso… é justamente esse seu lado ingênuo… que me ajudou a suportar meu dia a dia.

Em um dado momento da obra, logo no fim do 1º capítulo, é evidenciado pelo autor – em uma sacada que achei genial – que é mais surpreendente o fato do Arashiro ser gay do que ter se transformado em um monstro. Quero dizer, há, sim, um medo e repulsa pela aparência monstruosa, mas logo as pessoas se abstraem disso e focam na sexualidade dele, como sendo o que de fato é o repugnante, condenável e passível de repressão.

E é em partes por causa disso que o Arashiro tem um constante sentimento de vazio e de solidão. Não há ninguém naquela escola com quem ele possa contar, desabafar ou mesmo se divertir. É dor e sofrimento, repetidas vezes ao longo dos dias, semanas e meses. Então por mais que a sensação de estar se vingando seja prazerosa, no fim das contas, não é exatamente isso que vai nos satisfazer de forma plena. Sinto uma coisa meio frase célebre de Paulo Freire nessa história toda: ‘Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor’. Jamais que iria julgar o personagem por pensar dessa forma – eu mesmo penso assim -, porque entendo de onde vem tudo isso, afinal, já foi algo que vivenciei ao longo de muitos anos e embora tivesse amigas durante a escola, nunca chegou a ser algo estabelecido de uma forma que eu me sentisse 100% confortável, ainda mais que algumas delas, vez ou outra, zoavam comigo também ou queriam forçar algo que eu não queria, como tirar de mim que eu era gay, mesmo que eu não quisesse falar sobre isso.

“Antes de ser um monstro, a coisa que eu mais temia… era o momento de ir dormir. Este instante onde eu fecho os olhos… e puf, quando os abrimos… de repente… já é manhã. Era lá que para mim… o verdadeiro inferno começava. De volta a escola, eu levava baldes de água na cara… mensagens na mesa… eu tive minhas coisas roubadas e eu as encontrava espalhadas por todo lado. Mas… desde que eu cheguei neste colégio… é a primeira vez que… eu vou dormir com prazer.”

Um outro monstro aparece na segunda metade do volume, ele vai acabar por fazer um “par” (não no sentido romântico) com o Arashiro e graças a isso, o personagem que virou monstro terá que confrontar a isso mesmo para entender seus problemas e se entender consigo mesmo. A obra tem uma mensagem bem legal de aceitação familiar, tem momentos bem bonitinhos mais próximo da reta final da obra.

E quanto a aparição desses monstros, o autor até dá uma explicação para a transformação. Meu medo era ele tentar colocar algo muito apoiado em ciência, numa tentativa de tornar mais próximo da nossa realidade e eu particularmente não via necessidade nisso, porque parte da graça é a fantasia e assim, dentro daquele universo, se o autor não apresentasse nenhum motivo, estava tranquilo também, porque o principal é a mensagem da obra e isso ela está passando bem, então ter uma justificativa para o monstro pouco importa. Felizmente, o autor consegue achar um meio de explicar essas aparições de uma forma muito bacana, é fantasioso e mais uma vez, uma ótima sacada.

A obra termina – muito bem, aliás – e algo que achei bem legal é que nem todos os personagens mudam para melhor. Tem gente que começa de um jeito e termina daquele mesmo jeito, mesmo tendo passado por uma série de situações, elas não conseguem fazer um ponto de inflexão para pensar (ou repensar) sobre suas posturas e ações. Achei bem legal, porque afinal, é assim que acontece na vida real, quem nunca encontrou ou teve que lidar com gente (babaca) assim? Como o autor diz no posfácio do volume, há personagens que mudam, outros que não mudam e tem aqueles que não precisam mudar, apenas aceitar quem são e quem precisaria mudar, na verdade, são os outros que não nos aceitam apenas por orientação sexual, identidade de gênero, etnia…

A obra, além de fazer denúncias sociais, é também, uma espécie de declaração sobre amar a si mesmo, se aceitar como é, independentemente do que os outros acham, pensem ou digam sobre você. Eles não importam, o que é importante mesmo, é nos acolhermos, nos sentirmos bem com nós mesmos e ter quem entenda isso e nos abrace dessa forma, é muito reconfortante e também traz um apoio quando estamos abalados, perdidos ou mesmo sem saber o que fazer ou para onde ir. Acho que me tornei uma pessoa um pouco mais feliz desde que comecei a cursar Biologia na UFSCar, por ter encontrados amigas que estão lá por mim – e eu por elas – e que me dão a maior força quando preciso ^^

– Obrigado…

  • O autor

Normalmente, eu só faço essa parte de divulgação da carreira dos mangakas quando são autorAs, mas o Minamoto Kazuki é um caso muito especial, pois ele é um autor de demografia feminina! Estando fortemente ligado com a publicação de mangás eróticos para mulheres adultas!

Minamoto Kazuki nasceu em 17 de Setembro de 1984 em Saitama. Ele começa a publicar suas obras profissionalmente entre o fim dos anos 2000 e o começo dos anos 2010. Em 2011 ele lança o volume único “Moujuu Shinshi – Suit o Nuidara Kakugoshiro” na revista Renai LoveMAX (Josei/TL) da Akita Shoten. Nos anos seguintes, ele publicou diversas obras (a maioria volumes únicos) na revista YLC da editora Ohzora Shuppan, tais como “Zettai Fukujuu Princess” (2013) e “Takuhai Danshi!!” (2014), além de passar em revistas da Hakusensha, lançando “Gossip na Onna-tachi” (2014) e “Nugashitai Otokotachi” (2014), e sem abandonar a Akita Shoten, publicando por exemplo “Hige to Haihiiru: 42 Otoko to 23 Onna no Koi Monogatari” e “Shachou wa Reijou no Subete o Abaku” na Renai LoveMAX em 2016 e 2015, respectivamente.

Capas japonesas de “Moujuu Shinshi – Suit o Nuidara Kakugoshiro”, “Takuhai Danshi!!” e “Shachou wa Reijou no Subete o Abaku”, respectivamente.

A partir da segunda metade dos anos 2010 que o autor intensifica a produção de BL, participando de algumas coletâneas inicialmente. Em 2017 nasce “Märchen Kachou to Nonke Kouhai-kun“, seu trabalho BL mais conhecido, na revista Comic Ryu da editora Tokuma Shoten. A obra foi inicialmente completa em 4 volumes e está com uma continuação em publicação atualmente. E em 2018, ele lança “Gozen 0 ji no Shitsuren Doukoukai“, um volume único. Sua obra mais longa até hoje é o BL “Kabesaa Doujin Sakka no Neko Yashiki-kun wa Shounin Yokkyuu o Kojirasete iru“, está em publicação desde 2020 na revista Comic Ryu e em andamento com 8 volumes.

Voltando um pouco, em 2016 ele publica “Shoujo Mangaka no Minamoto-san ga Kaminguauto Shimasu” pela Ohzora Shuppan, um mangá autobiográfioco em que ele se assume gay ^^. “Monstrophobie” (Kaiju ni Natta Gay) foi publicado pela Enterbrain em 2021 e ainda em 2021, pela revista Missy (Ohzora Shuppan), ele lança “Misoji Gay, Tatanaku Narimashita” um ensaio autobiográfico sobre o seu diagnóstico de disfunção erétil psicogênica, a luta de quatro anos contra ela, começando com a negação inicial, seu subsequente confronto com o problema e como ele passou a aceitá-la. “Misogi” será lançado no Brasil sob o título “Um gay de 30 anos – Meus dias lutando contra a aceitação“.

Capas de “Märchen Kachou to Nonke Kouhai-kun” #1, “Kabesaa Doujin Sakka no Neko Yashiki-kun wa Shounin Yokkyuu o Kojirasete iru” #1, “Shoujo Mangaka no Minamoto-san ga Kaminguauto Shimasu” e “Misoji Gay, Tatanaku Narimashita”

  • A edição francesa

O mangá foi lançado na França pela Akata no formato 12,8 x 18,2 cm (semelhante aos formatos brasileiros de “Perfect World” e “A Casa do Sol”), com capa cartonada e sobrecapa fosca. O mangá possui uma página colorida no começo em papel couché brilho e o papel do miolo não foi especificado, mas é parecido com o Pólen usado no Brasil. O mangá tem 258 páginas no total e preço de 8,25€. Abaixo vocês podem ver a edição francesa em detalhes:


  • Conclusão

“Monstrophobie” foi uma excelente experiência de leitura, sendo uma reflexão bem interessante sobre a escola, organização e hipocrisia social, mas também uma boa mensagem sobre aceitação e aprendizado. É uma pena que quem precise ler esse tipo de obra raramente vai ler, e boa parte, ainda que lê-se, não entenderia o que está lendo. Em todo caso, é sempre bom ter esse tipo de obra sendo publicada e espero que um dia chegue ao Brasil, enquanto esse dia não chega, deixo desde já, a recomendação do mangá!

– O que? O que está fazendo aqui?
– Bem… na verdade… eu vim rir de você… e da sua cara suja de monstro

  • Ficha Técnica
  • Título original: Kaiju ni Natta Gay (怪獣になったゲイ)
  • Título francês: Monstrophobie
  • Autor: Minamoto Kazuki
  • Serialização no Japão: –
  • Editora japonesa: Enterbrain
  • Editora francesa: Akata 
  • Quantidade de volumes: volume único
  • Formato: 12,8 x 18,2 cm
  • Quantidade de páginas: 258
  • Papel: ???
  • Preço de capa: 8,25€

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