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O mundo binário e as pressões para se encaixar nos padrões sociais.

Olá, pessoal! Seguimos com mais uma postagem de resenha ou apresentação de algum mangá dedicado ao mês do orgulho de 2023. Não sei qual ordem eu vou postar, depende do que estarei disposto a escrever realmente, entretanto, dessa vez, irei falar de um mangá não publicado no Brasil: “À l’image de Mona Lisa…“, algo como “À imagem de Mona Lisa…“, ou como é no original “Seibetsu ‘Mona Lisa’ no Kimi e.“. O mangá é publicado na França pela Akata desde outubro do ano passado e é uma história a qual eu descobri por causa da editora francesa. Eu não conhecia a obra nem mesmo de vista e fiquei intrigado com a proposta dele quando vi o anúncio, passando a ficar muito ansioso para conhecê-lo. Fiz a leitura do 1º volume e a minha ideia inicial era escrever uma resenha dele em francês, como fiz com “Scum’s Wish” T.1 e “A sign of affection” T.1 e T.2. Mas meu francês ainda é muito ruim e não senti confiança de escrever sobre ele. Então irei aproveitar essa oportunidade para falar dele aqui no blog em português ^^.

“À l’image de Mona Lisa…” (性別「モナリザ」の君へ。) é um mangá da Tsumuji Yoshimura, publicado no Japão entre 2018 e 2022 na revista Gangan Online da editora Square Enix, sendo concluído em 10 volumes. Não que isso impacte na minha leitura atual, mas acho interessante pontuar que o mangá tem três finais diferentes. Um no volume 8, outro no 9 e um terceiro no 10. Normalmente acho esses casos de finais diferentes terríveis. No entanto, aqui eu acho um caso bem interessante por possibilidades que a autora teve para explorar certos aspectos da narrativa. Não posso dizer o quê exatamente, mas creio que durante a leitura da resenha, você pode entender mais ou menos o que quero dizer e para onde a história vai (sem spoilers, claro). Então, allons-y !

Sinopse: “Bem-vindo a um universo onde as crianças nascem sem atributos sexuais. É por volta dos 12 anos, rumo à puberdade, que em função de seus sentimentos, cada pessoa decide: tornar-se mulher ou homem. Mas Hinase tem quase dezoito anos e não quer escolher. Infelizmente, neste mundo muito binário, conforme o fim do ensino médio se aproxima, seu arredor o pressiona… começando por Shiori e Ritsu, seus dois amigos de infância que perceberam seus sentimentos por Hinase. Este é o começo de um complexo triângulo amoroso…”


Em “À l’image de Mona Lisa…”, nós temos um mundo em que crianças nascem sem gênero e que aos 12 anos, aproximadamente, conforme o que elas sentem, vão adquirindo características tipicamente atreladas ao gênero com que se identificam. O ponto de partida acaba sendo o Hinase, que aos quase 18 anos, ainda não tem um gênero e vive como não-binário, considerado como uma anomalia naquela sociedade (não que seja diferente do nosso mundo, claro). A proposta do mangá por si só já é muito interessante, porque a autora joga para um cenário fictício, mas que diversas discussões são pautadas na realidade e na sociedade em que estamos.

“Dizem que um demônio brincalhão deixou três relíquias na Terra para perturbar a alma dos humanos. A primeira é o violino… A segunda, o espelho… E a última…
… Mona Lisa.”

Logo nas primeiras páginas do mangá, é mencionado um demônio que deixou três coisas na Terra que serviram para atormentar os humanos: o espelho, que ao meu ver, vai refletir o rosto das pessoas e, portanto, suas características de gênero; o violino, que em conversa com seguidores do blog, pode ser uma alusão ao violinista italiano Giuseppe Tartini que dizia sonhar com o diabo tocando o violino; e por fim a Mona Lisa, que no mangá vão mencionar a teoria de que Da Vinci fez ela misturando características de homens e mulheres, o que faria sentido ela ser “demonizada” por não entrar no padrão da sociedade. Gosto que a Mona Lisa aqui vai ser usada como um recurso para explicar ou definir como observam o Hinase no inicio. É explicitado que os demais veem o Hinase como um estranho. Por ser diferente do padrão, embora não seja feito bullying ou ações de intimidações com ele propriamente, você sente ao longo do volume que elu está sendo visto como uma anomalia.

O mangá utiliza do primeiro capítulo para introduzir as bases daquele mundo, como se organiza e sobre como Hinase se sente e é visto pelos demais. A autora tendo posto isso, vai usar como ponto de partida para a história a declaração da Ritsu e do Shiori, seus dois amigos de infância, e que isso acaba abalando elu, afetando sua carga hormonal e tirando a sua estabilidade a qual até certo ponto, elu lidava bem. Apesar de triângulos amorosos já terem sido usados de N formas, e dependendo da forma que você consome, já está bem saturado. Mas aqui, gosto bastante, pois a autora vai usar os dois personagens como grandes recursos de roteiro para falar de aspectos sociais, especialmente ligados ao Hinase, já que tanto um como o outro vão tentar puxar o Hinase para um gênero que satisfaça seus próprios desejos, enquanto o Hinase fica em um turbilhão de emoções, muitas das quais elu não sabe como lidar.

Os amigos (especialmente o Shiori) não tem muita noção. Agem por impulso muitas vezes e fazem o Hinase como uma peteca, pois ficam jogando e disputando elu como uma peteca realmente. Em muitos casos, não vão considerar o que elu está sentindo. São cenas que, pela reação do protagonista, causam certo desconforto por vermos como está agindo nessas situações. A Ritsu que mais vai refletir sobre suas falas nesse volume (e até por isso simpatizo mais com ela). Por exemplo, quando ela faz a sua declaração, ela diz ao Hinase que “o fará um homem” e posteriormente, ela pensa sobre como aquilo foi grosseiro e errado pela forma como ela colocou em palavras. Ela passou muito tempo sonhando com aquele momento e na hora, por nervosismo, acabou dizendo coisas que não queria. Eu gosto disso, porque mostra que eles são adolescentes, que fazem cagada, porém que refletem sobre o que fazem e o impacto que suas as ações têm sobre os outros, que nesse caso é sobre Hinase. Quero dizer, por enquanto, apenas a Ritsu faz isso. O Shiori, por enquanto, age de forma mais incisiva e realmente não demonstra fazer uma reflexão sobre como o Hinase se sente, até por isso acho ele bem desagradável em algumas passagens do mangá. Acredito que até certo ponto, o Shiori não pensa sobre como os outros enxergam elu e a pressão que se faz por ser visto como uma anomalia (uma cena que evidencia isso é quando a professora menciona que Da Vinci talvez considerava a mistura de gêneros como a verdadeira beleza e todos na sala voltam seus olhares para o Hinase). Não há um discernimento de limites, sabe? Acho que ele vê como se “tudo” valess, por se conhecerem desde a infância.

“Eu farei de você um garoto ! Então… saia comigo… por favor !”
“Eu te amo, Hinase. Eu quero fazer de você uma garota”

Ao longo do volume, tem algumas passagens interessantes sobre a escolha do gênero na juventude, ou seja, sobre as relações com o meio e como isso os influenciou a tomar uma decisão. A obra dialoga um pouco com a pergunta de até que ponto a escolha do gênero foi uma escolha sua e não uma pressão do seu entorno para que você fosse daquela forma para atender uma expectativa? São aspectos interessantes que são lançadas pela autora e que geram ótimas reflexões, pois essa construção de gênero, na nossa sociedade atual, está muito ligada a coisas ou jeitos que são tipicamente atribuídos a um gênero, como “Ah, mulheres tem usar isso, aquilo ou aquele, se sentar dessa forma, vestir essa roupa, etc.”. Se no nosso mundo nós “nascemos com um gênero” (as aspas aqui vão, porque gênero é uma construção social, portanto uma interpretação humana da natureza), em um cenário que você nasce sem um e se apropria de características tipicamente atreladas a homens e mulheres, torna essa escolha mais difícil, seja porque 12 anos é muito cedo, mas principalmente pelas influências e pressões que os outros vão exercer sobre você. Pensem um pouco. É muito do que vemos com, por exemplo, os nossos pais que se frustram que o filho não será homem, sendo bem evidenciado por aqueles (horrorosos) chás de revelação.

A autora explora essa questão a princípio com a Ritsu, que por ser boa em esportes na infância, se criou uma expectativa de que elu escolhesse se tornar uma mulher quando chegasse o período da mudança. Em outra situação, também ligada por questões de porte físico, não podia gostar de coisas fofas, delicadas ou que soassem como “femininas”, novamente porque se fazia pressão para que escolhesse o gênero masculino quando crescesse. Foi Hinase que acabou sendo decisivo na escolha do gênero feminino para elu, porque, indiretamente, Hinase passa a ideia de que “Olha, se você gosta dessas coisas, delicadas e femininas, está tudo bem e combina com você. A escolha é sua no fim das contas e não dos outros”.


Acho que a impressão maior que fiquei quando terminei de ler esse primeiro volume é que mais do que não ter um gênero, é sobre como elu não consegue ou não quer escolher um. A história diz que a partir do momento que a pessoa decide o que ela quer ser, o corpo passa a mudar a partir dos 12 anos para se adequar ao “corpo masculino ou feminino”. Entretanto, o Hinase não consegue escolher. É uma ideia que assusta e que o personagem foge. Tanto que a declaração dos dois amigos balança a estabilidade delu e essa ideia de transicionar para um gênero é assustadora, ainda mais com a impossibilidade de mudança (dentro daquele contexto de mundo extremamente binário).

E acho que vale a menção: estou fazendo a resenha desse volume com base na edição francesa e nela, quando vão se referir ao Hinase, usam o pronome “iel”, que é o pronome neutro francês (ele foi reconhecido e incluído pelo dicionário Le Robert no fim de 2021). Achei muito bacana isso, pois a Akata é muitíssimo ligada à pautas sociais e está sempre as apoiando em diversas ocasiões e de diferentes maneiras.

“Por que você me perguntou isso ? ELU (IEL) te disse alguma coisa então !”

  • Arte

Desde o anúncio da Akata, a arte da autora me chamou atenção. Além do desenho bonito, a arte utilizada no banner tinha um conceito excelente: era Hinase cercado por fitas como se ele fosse um quadro (Mona Lisa), e enquanto isso, mãos amarravam fitas e adereços atrelados ao sexo masculino e feminino, representando como querem o prender a esses padrões binários. O interior do mangá não deixa nada a desejar. Tanto a arte colorida é linda, mas também a arte preto em branco é dinâmica, viva, que transborda sentimentos (seja aqueles mais vívidos, como os melancólicos). O mangá inteiro ter detalhes pintados em azul turquesa torna tudo mais lindo. Vão desde pintura dos olhos, até quando Hinase está com sentimentos aflorados, ou mesmo para representar objetos e adereços “masculinos” e “femininos”.


  • A Edição Francesa

A edição francesa está sendo lançada no formato 12,7 x 18,0 cm (é semelhante a edição brasileira de “Perfect World” ou “Força, Nakamura!!”), com capa cartonada e sobrecapa fosca, ao preço de 8,20 euros. Cada volume tem cerca de 200-220 páginas por volume. Páginas em preto e branco (não se sabe o papel, mas parece Pólen) com detalhes em azul turquesa e páginas coloridas em papel couché brilho. Abaixo vocês podem ver um vídeo mostrando a edição francesa em detalhes:


  • Conclusão

“À l’image de Mona Lisa…” é um mangá muito interessante que se utiliza de um cenário fictício para trabalhar com abordagens sociais pertinentes da nossa sociedade. O mangá tem uma narrativa excelente, uma maneira de conduzir uaa história ótima e traz uma nova roupagem para os já saturados triângulos amorosos. É uma leitura que recomendo fortemente! ^^

“… vai mudar tudo.”

  • Ficha Técnica
  • Título original: Seibetsu “Mona Lisa” no Kimi e. (性別「モナリザ」の君へ。)
  • Título francês: À l’image de Mona Lisa…
  • Autora: Tsumuji Yoshimura
  • Serialização no Japão: Gangan Online
  • Editora japonesa: Square Enix
  • Editora francesa: Éditions Akata
  • Quantidade de volumes: Completo em 10 volume
  • Formato: 12,7 x 18,0 cm; capa cartonada com sobrecapa fosca
  • Preço de capa: 8,20 €

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