Depois de uns dias de pausa por conta de trabalhos na Universidade, estou de volta, e espero que com maior consistência, para comentar mais uma estreia da Temporada de Outono de 2025! Inicialmente, planejei ver e comentar “Debu to Love to Ayamachi to!” (Plus-sized Misadventures in Love!), mas “Kimi to Koete Koi ni Naru” estreou e ele me pareceu mais urgente devido a alguns comentários “complicados” que já vinham aparecendo desde o anúncio do anime e foram intensificados agora após a estreia.
Sinopse: “Quando a estudante do ensino médio Mari se atrasa para a escola, ela não imagina se apaixonar por Tsunagu — um homem-fera gentil e sensível! Em um mundo onde os homens-fera são segregados por muros, Mari e Tsunagu mostram que suas diferenças são verdadeiras pontes. Será que o amor deles conseguirá superar a barreira entre os homens-fera e a humanidade?“

Como bem dito na sinopse, no universo da obra nós temos um mundo onde existem o que chamam de “homem-fera”, são pessoas que, devido a um experimento feito em humanos, adquiriram características de animais. Eles vivem suas vidas normalmente, exceto pela segregação que acontece entre essas pessoas e as “pessoas comuns”, com eles vivendo em uma vila cercada por muros. Temos aqui, o início e o desenvolvimento do romance entre a Mari, que se conhecem quando ela chega atrasada na escola e decide pular o muro e o Tsunagu, que também estava atrasado e que ela incentiva a pular o muro também.

Antes de falar mais do anime em si, preciso fazer um a parte aqui para comentar sobre a maneira como as pessoas estão banalizando a questão da zoofilia para se referir a quem gosta da obra ou mesmo, acusando a autora de flertar com isso. Acho complicado ficar banalizando esses assuntos, porque no caso do Tsunagu (e dá para extrapolar para os outros personagens pelo que deu para ver), o que temos de características animais são orelhas, focinho, rabo e pelos. O que as pessoas acham interessante no personagem é no fato dele ser um lobão de dois metros que é um fofo, que fala do que pensa e sente e se preocupa com os outros, não por ele ser um lobo em si (ou cachorro, etc…). E da forma que falam, parece que por gostar do anime, alguém vai ir lá e pegar um cachorro, ou qualquer outro bicho, para abusar dele.
Eu acompanho diversos mercados de mangás do ocidente e em especial, o francês, por conta disso, minha TL do Twitter aparece várias coisas da comunidade Shoujosei francesa e vi esses comentários sobre zoofilia vindo de lá, o que não significa que não tenha aqui. Estava conversando com uma amiga sobre a obra mais cedo e tem tanto uma linha de gente da comunidade que quer se distinguir porque “não consome esse tipo de obra”, e para isso, várias vezes vão se alinhar com discurso de otaku médio incel, mas o que acho importante destacar é que não importa se você lê “”romances normais””, Shoujosei de fantasia, ação, aventura, horror… o que quer que seja, não importa, porque no fim das contas, são todas obras que são feitas por e voltadas para mulheres e nesse ponto, vai ser tudo encarado como BOSTA. Para encerrar essa parte, queria dizer que não lembro de ter visto esse nível de comoção quando “BEASTARS” (Shounen) foi ao ar (e eu sei que lá, todos os personagens são animais antropomorfizados). Lembro apenas do show que uma ala otaku deu com uma personagem da obra, uma das centrais, se bem me lembro, dava em cima de “vários” caras no anime (e aí, entra misoginia). E se for para falar de algo, acho muito mais problemática a maneira como, por exemplo, “Murenase! Seton Gakuen” (Shounen) lida com personagens antropomorfizados. Esse é um anime de alguns anos atrás que os personagens antropomórficos masculinos eram praticamente suas versões animais, enquanto que as femininas, tinham uma ou outra característica (rabo e orelha, normalmente) e para além disso, o anime usava da biologia para se valer de homofobia, transfobia e até era bem misógino em algumas de suas “piadas”. O total oposto de “Kimi to Koete”, que só quer contar um romance juvenil e que pincela sobre aspectos sociais.

Eu não conhecia a obra propriamente. Sabia da existência e de que, inclusive, ela é derivada de um mangá TL (Teen Love) em 2 volumes chamado “Juujin-san to Ohana-chan” que a autora publicou antes de “Kimi to Koete”, mas nunca havia aberto o mangá para ler alguma coisa. E o que me deixa realmente puto é que enquanto as pessoas estão banalizando pauta como se gostar do anime alguma pessoa (mulheres) fossem pegar um cachorro na rua para abusar, a obra está tratando de assuntos MUITO legais como assédio e preconceitos. Homens-fera são um grupo de pessoas, é dito que existem cerca de 3 mil deles, que são frutos de experimentos em humanos, o que por si só já é algo horrível, mas além disso, o anime está mostrando como as ditas “pessoas comuns” podem ser invasivas, insensíveis ou mesmo, ofensivas com o que elas pensam ser “curiosidade” quando alguém que foge do “padrão” ou “normal”. Basta ver, por exemplo, a maneira como a nossa sociedade tratam pessoas com deficiência como algo “exótico” (para além de outras problemáticas que essas pessoas acabam sendo vitimas). Se parar para pensar e extrapolar um pouco, o que a obra está trabalhando a certa altura é com racismo, até pela maneira como eles vivem segregados e confinados dentro de muros, podendo passar ‘para o outro lado’ só com autorização ou quando demonstram ‘se comportar’ (leia-se: não apresentar nenhum risco). Gosto como a autora coloca justamente essa figura dos homem-fera como sendo mais empática, atenciosa e carinhosa, do que os ditos “humanos comuns”.
Um outro exemplo das coisas interessantes que a autora pincela já nesse primeiro episódio é nesse lado do isolamento que eles vivem. Na vila, não existem médicos ou pontos de atendimentos. Então eles mesmos precisam cuidar deles, indo ao hospital só em casos muito graves, e que, creio eu, ainda deve haver uma relutância, pois imagino que a ideia é deixar eles para morrer mesmo, e daí surge o desejo ou sonho do Tsunagu de estudar para se tornar um médico e poder atender seus conterrâneos de maneira decente. E aliás, ainda nesse ponto deles viverem confinados, o que acho intrigante é que há um certo desconforto (proposital) na maneira como eles precisam interagir para sair da vila. O local é com muros altos e para eles saírem, precisa-se abrir portões e nesses portões, há guardas. Todo o seguimento pela maneira como são vistos e tratados na sociedade, é sempre naquele ar de desconfiança e de grande hostilidade. A intenção da autora, pelo que eu imagino por causa do clima geral da série, não é pesar o clima e nem ser profunda nessas questões de cunho social, mas acho bacana, porque isso dá uma profundidade aos personagens e torna eles mais complexos.

E ainda nesse aspecto, o Tsunagu não pode e não quer se irritar com ninguém, muito menos se meter em alguma confusão. Ele teme se envolver com alguma briga e com isso, revoguem a licença de estudante que ele conseguiu, o que arruinaria com seus planos. Ele tolera coisas e evita um contato próximo com quem ele percebe que a intenção é maliciosa com ele. É nesse contexto que, depois da aula de esportes, um grupo de garotos vai e prende ele dentro da sala que guardam os equipamentos de educação física e quem acaba ficando presa junto dele, é a Mari, que a essa altura, já está bem interessada na… estrutura corpórea dele. Ele fica se sentindo culpado com o fato de causar algum problema para ela, ainda mais que um pouco mais cedo no episódio, dois encrenqueiros foram incomodar o Tsunagu e a Mari acabou sendo envolvida nisso, com os dois indo para dentro do rio da cidade.
Eu gosto que a obra “Kimi to Koete” vai além daquele estereótipo (horroroso) que Shoujo é romance escolar fofinho, inocente, puro, que os protagonistas demoram até para conseguir dar as mãos. Esse mangá é publicado na Manga Mee, uma revista Shoujo digital da Shueisha, mas isso que vocês não viram o teor sexual que frequentemente se tem nas obras da revista Cheese!, da Shogakukan, rs. E uma coisa que venho comentando sobre algumas dessas adaptações de Shoujos mais recentes é que a demografia (e claro, suas autoras) parecem cada vez mais interessadas em discutir e falar sobre a questão da sexualidade e desejo, o que é sempre algo positivo. Nesse caso, o enredo está no aspecto mais fantasioso da coisa toda, já que o par romântico da protagonista é um lobão de 2 metros.

Se o texto foi interessante e a condução do episódio correu bem, hora de falar da staff do anime, que tem alguns problemas. Esse primeiro episódio, visualmente falando, está muito bonito! Os designs são bem detalhados, os personagens são bonitos e eles estão deixando o Tsunagu bem detalhado, mesmo considerando que ele é cheio de pelos e a própria morfologia do rosto não ser algo fácil de fazer e desenhar. Porém, é preciso dizer que este é um anime do estúdio Millepensee (Kumo desu ga, Nani ka?) e não teve um anime na história recente do estúdio que não tenha passado por problemas de produção, porque a produção derreteu no meio do caminho, resultando em longos atrasos nos episódios e queda brusca da qualidade (um dos mais recente deles, “Isekai de Cheat Skill wo Te ni Shita Ore wa“, passou exatamente por isso), então imagino que com “Kimi to Koete”, infelizmente não será diferente. Eu daria mais uns 3 ou 4 episódios, no máximo, para pelo menos começar a apresentar esse tipo de problema.
Agora, embora seja um anime bonito visualmente, ele tenha um bom ritmo de maneira geral, um humor bem ajustado e funcional, créditos para a direção do Shin Itagaki (que além da direção, ainda é diretor de animação, diretor de som, produtor e assina pela composição de série/roteiro do anime) me incomoda um pouco a montagem de algumas cenas. Eu não tenho vocabulário para explicar essa sensação de maneira técnica, que seria o mais apropriado, mas a impressão que eu tenho é que o storyboard é como se estivesse usando o material de base, porque tem cenas que o anime “trava”. Aconteceu mais de uma vez ao longo desse episódio de estreia do cenas não ficarem fluidas e terem interrupções da sequência meio abruptas, principalmente no movimento dos personagens, como quando vão se mover e para trocar de take, fica truncado. Não sei se foi só eu com essa impressão, mas me incomodou um bocado.

Com esse texto, não estou dizendo que você não pode odiar ou não gostar do anime, longe disso. Tem gente que não gosta de furry e está tudo bem (eu mesmo não sou fã). O que acho complicado é querer banalizar certos assuntos, como zoofilia nesse caso, porque a obra está longe de querer romantizar algo nesse sentido ou defender quem o faça. E no caso da obra, acho meio triste reduzir ela a algo “bizarro” quando ela está trabalhando com temas bem legais de forma geral.
Dito tudo isso, adorei a estreia e recomendo darem uma olhadinha!

