Um cachorro e várias histórias entrelaçadas...

Durante o mês de Agosto, estarei publicando uma resenha por dia como celebração aos 5 anos de existência do blog. Comecei a pensar na lista de obras que iria resenhar no começo de Agosto, selecionando principalmente mangás de demografia feminina e lançados no Brasil, mas também, optei por alguns que não foram publicados ou anunciados no Brasil, por achar as obras interessantes e poder comentar no blog algumas das leituras de mangás em francês que estou tendo (ainda mais que a maior parte das minhas leituras de mangá recentemente são de edições francesas).

Um desses mangás foi “Le Chein qui voulait voir le Sud” (O Cão que queria ver o Sul) ou “Shounen to Inu” (少年と犬) como foi publicado no Japão. A obra é um volume único e é uma adaptação em mangá de um romance de mesmo nome escrito por Seishu Hase. O mangá, por sua vez, ficou a cargo do Takashi Murakami, que vocês podem lembrar do nome pois é o autor de “O Cão que Guarda as Estrelas”, lançado no Brasil e que em breve, deve ser relançado pela editora. “Le Chien” foi lançado em Março desse ano pela Akata e dado a proposta, prontamente adquiri a obra.

Sinopse: “Desde o triplo desastre em Tohoku, Tamon tornou-se um cão vadio e viaja incansavelmente em direção ao Sul… No caminho, ele conhece muitas pessoas deixadas para trás pela sociedade: um pai levado ao crime, um imigrante, uma prostituta e um velho às portas da morte. Mas esse cachorro nunca julga os humanos e poderia até curar os corações dessas almas machucadas pela vida… Porém, apesar dos laços que cria através de seus encontros, ele parece nunca querer parar. Ainda assim, ele avança em direção ao Sul. Qual é a sua verdadeira motivação?”


  • História e Desenvolvimento

Breve contexto histórico: Tohoku é a região Nordeste do Japão e ela compreende as províncias de Akita, Aomori, Fukushima, Iwate, Miyagi e Yamagata. Essa região foi afeta por uma tripla catástrofe: terremoto, tsunami e um desastre nuclear. No dia 11 de março de 2011, um poderoso terramoto de magnitude (Mw) 9,1 na escala de Richter atingia a região, seguido por diversos outros tremores de magnitude menor, mas ainda assim, destrutivos. Os tremores provocaram tsunamis com altura máxima de onda de quase 40 metros, registados na província de Iwate, provocando destruição total de mais de 123.000 casas e estragos em quase um milhão, 98% delas causados pelo tsunami. Estima-se que o tsunami tenha deixado mais de 450 000 mil pessoas desalojadas, enquanto que 15.899 pessoas morreram, 2.527 desaparecidos e 6.157 feridos. Por fim, por causa do terremoto, várias instalações de centrais nucleares afetadas, dentre elas: Tokai, Higashi Dori, Onagawa e Fukushima Dai-ichi e Dai-ni. A mais afetada dessas centrais nucleares, foi a central nuclear de Fukushima Dai-ichi, que perdeu toda a energia da rede elétrica, tendo sido alimentada por geradores a diesel, por cerca de 40 minutos. Nesse momento, ondas de aproximadamente 14 metros de altura atingiram o local, danificando muitos dos geradores e colocando em causa todo o sistema de refrigeração. Como consequência, todos os sistemas de instrumentos e controle dos reatores 1 a 4 foram perdidos, o que rendeu uma série de explosões causadas pela libertação de hidrogênio, e que causaram uma extensa fuga de material radioativo. Em poucos dias, os núcleos de três dos seis reatores nucleares daquela central haviam derretido. A contaminação radioativa espalhou-se por uma grande área da região, obrigando à evacuação de milhares pessoas em um raio de 20 km1.

O Takashi Murakami é meio que um especialista em histórias (normalmente tristes) que envolvem cachorros e aqui, ele novamente faz um trabalho com maestria – muito embora eu nunca tenha lido um trabalho anterior dele, mas todo mundo fala bem, então acredito. No mangá, nós vamos ter um cachorro cruzando o caminho de “cinco pessoas” enquanto segue seu trajeto para o sul. São histórias mais ou menos conectadas, algumas mais que outras, e outras mais “causais” ou “à parte”, no entanto, em todas o autor usa do cachorro – chamado Tamon – para que conheçamos essas pessoas e suas histórias.

O cachorro… tinha sempre o olhar voltado para o Sul

Eu não vou detalhar muito as histórias, porque perde a graça de conhecer elas uma por uma, mas vou dar uma passa por cima nas quatro primeiras, a última, no entanto, é a que menos poderei dizer algo, pois é ela que amarra tudo e encerra a obra de uma maneira formidável. Em resumo, são histórias de vida de pessoas comuns, algumas abandonadas pela sociedade, outras vítimas dela, outras desiludidas e deprimidas. São histórias de pessoas comuns, que você eventualmente pode conhecer ou ouvir falar por aí e isso é um dos aspectos que mais acho legal no mangá, são casos muito humanos e tratados com muita parcimônia e um certo carinho pelo autor. Não sinto que hajam julgamentos das motivações e ações dos personagem, ele coloca na história e deixa para você sentir tudo. Ter o cachorro ali torna tudo ainda mais interessante, justamente porque ele não vai ter esse olhar de julgar as pessoas, ele vivência e, muitas vezes, é quem vai “estender a mão” para essas pessoas que, essencialmente, estão perdidas.

Começando com a 1ª história, é sobre um homem que foi afetado pelo tsunami e como consequência, perdeu sua renda. O auxílio prestado pelo governo era insuficiente e o que lhe restou foi trabalhar como motorista de bandidos que faziam parte de uma organização e se aproveitavam da tragédia para assaltar lojas da região. Sua única função era pegar eles, levar até o local e deixá-los de volta em um determinado ponto. Em um desses dias que ele estava para começar o trabalho, ele encontra o Tamon (cachorro) sozinho e acaba levando ele junto. O que vemos aqui é um senhor, desamparado pelo estado e que precisa complementar renda diante da impossibilidade de empregos formais em meio ao caos, e ainda, tendo a necessidade de cuidar da mãe, que está acamada e com demência, piorando a cada dia.

Mamãe? Sou eu. Você me ouve? Está dormindo?

O 2º conto temos a perspectiva de um dos ladrões que fazia parte da dita organização. Nessa história, conhecemos um pouco da história dele, especialmente da infância. Ele é um imigrante filipino que vivia à beira de um lixão a céu aberto com sua família e com um cachorro muito companheiro dele. Por uma infelicidade ocasionada por um objeto, vai acontecer algo que vai mudar profundamente a vida dele e da sua família, forçando ele a entrar no mundo do crime e empurrando sua irmã para a prostituição (isso enquanto tinha apenas 10 anos de idade). O encontro dele com o Tamon acaba trazendo boas recordações para ele, especialmente como um sinal de bom presságio. Eles ficam juntos durante um tempo, até a separação deles, especialmente porque ele quer voltar para as Filipinas, enquanto que o Tamon precisa continuar seu trajeto até o sul.

– Obrigado por nos deixar entrar. Você foi o único a parar. Ainda assim, não esperar encontrar um caminhoneiro iraniano!

Enquanto que a 3ª é sobre uma mulher que trabalha com prostituição e vivia com o marido em uma casa no que parece ser um subúrbio. Esse cara é um folgado, encostado, viciado em jogos e que está sempre pedindo e pegando o dinheiro dela “emprestado” para fazer apostas, sempre na promessa de devolver o dinheiro dela quando ele enfim ganhar alguma dessas apostas que ele faz. O que temos aqui é uma mulher que está perdida, divagando e só levando a vida conforme dá, num marasmo do cotidiano e sem saber o que fazer realmente. Esse não dá para entrar em muitos detalhes, porque a história da vida dela é o ponto importante do conto, mas gostei bastante desse capítulo.

– Humm, Leo. Você é quentinho. Você está sempre com a cara virada para o Oeste… você olha o quê? Iwate não é nesta direção, para lá é Kyushu…

E a quarta história é sobre um senhor de idade que está com um câncer de pâncreas já em estado avançado e se recusa a fazer o tratamento para a doença. Há não muito tempo atrás, ele perdeu a esposa, também por um câncer (e no mesmo órgão) e aquela situação de uma pessoa que já desistiu e aceitou seu destino, ele apenas quer ficar em sua casa e morrer por lá. O encontro dele com o Tamon, traz uma luz, não no sentido de lutar contra a doença, mas de um certo alívio para alguém que não quer estar sozinho quando morrer e ao mesmo tempo, de tentar permanecer por algum tempo, até que sua filha possa ir visitá-lo.

O quinto capítulo, porém, eu definitivamente não posso entrar em muitos detalhes, porque ele amarra o começo ao fim de uma maneira muito sagaz e comovente, então qualquer coisa que eu venha a contar aqui, vai tirar a graça da experiência na leitura. Mas posso garantir que é bem emocionante.

– Querido…
– Sim, eu não acredito… Ele sorriu… Hikari sorriu!

Todas as histórias são trágicas de uma maneira ou de outra, mas as três primeiras em particular, me tocam num ponto muito profundo, porque são casos de pessoas que foram abandonadas, estão desassistidas pela sociedade e que mostram um efeito dominó. Algumas dessas histórias, inclusive, não são exatamente “concluídas”. Elas param no exato ponto em que os personagens decidem deixar o Tamon seguir seu caminho e embora tenha uma sensação de “incompleto” as vezes ou mesmo um desejo de ver um pouco mais das consequências das ações daquelas pessoas, eu acho que combina bem com o mangá, porque dá aquela impressão de ‘passagem’, de ser algo momentâneo e um recorte da vida delas, sendo esse recorte o momento que o cachorro está com elas.

É um mangá que em essência, é feito para chorar. Ele pode te pegar tanto pelo fator desolador da tragédia, como pelas histórias que estão sendo apresentadas e o destino dessas pessoas que, muito embora tenham ações questionáveis no presente, em sua maioria são frutos do abandono e desamparo social produzidos essencialmente pelo Capitalismo.


  • A edição francesa

O mangá foi lançado na França pela Akata no formato 12,8 x 18,2 cm (semelhante aos formatos brasileiros de “Perfect World” e “A Casa do Sol”), com capa cartonada e sobrecapa. O papel do miolo não foi especificado, mas é parecido com o Pólen/Avena usado no Brasil. O mangá tem 208 páginas no total e preço de 8,05€. Abaixo vocês podem ver a edição francesa em detalhes:


  • Conclusão

“Le Chien qui voulait voir le Sud” é um mangá bem interessante, emocionante e me rendeu umas lágrimas durante a leitura. Como a JBC vai republicar “O Cão que Caça as Estrelas” e vai publicar “Pino”, que é um dos trabalhos mais recentes do autor, eu imagino que “Shounen to Inu” deve chegar ao Brasil cedo ou tarde! Fica a recomendação para a obra 🙂

E para fechar, fiquem de olho no blog para ler essa e outras resenhas que estaremos postando! Obrigado por lerem e até a próxima ^^


  • Ficha Técnica
  • Título original: Shounen to Inu (少年と犬)
  • Título francês: Le Chien qui voulait voir le Sud
  • Autor: Takashi Murakami
  • Serialização no Japão: –
  • Editora japonesa: Bungeishunju
  • Editora francesa: Akata
  • Quantidade de volumes: volume único
  • Formato: 12,8 x 18,2 cm
  • Quantidade de páginas: 258
  • Papel: ???
  • Preço de capa: 8,05€

1Fonte: Tempo.pt: Japão, 11 de março de 2011: uma tragédia em três atos

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