A praia de Mengo Yokoyari: personagens questionáveis

27 de fevereiro é o dia em que a Mengo Yokoyari faz aniversário. Para esta ocasião, decidi fazer a resenha do volume #1 da sua obra mais emblemática: Scum’s Wish (como é lançado na França) ou Kuzu no Honkai, embora ela tenha sido mais impulsionada no ocidente por ser a ilustradora de “Oshi no Ko“.

“Scum’s Wish” ou “Kuzu no Honkai” (クズの本懐), é um mangá escrito e ilustrado por Mengo Yokoyari. Ele foi publicado entre 2012 e 2017 na revista Big Gangan da editora Square Enix, e inicialmente foi completo em 8 volumes. No entanto, ainda em 2017, a obra ganhou um 9º volume intitulado “Kuzu no Honkai – décor”, que conta um pouco do futuro dos personagens principais da obra. Também em 2017, a obra ganhou uma (excelente!) adaptação em anime que foi exibida entre janeiro e março daquele ano, com um total de 12 episódios. O anime está disponível (com legendas) na Amazon Prime Video sob o título “Desejos Proibidos”. Na França, o mangá começou a ser publicado em julho de 2022 e é por meio dela que irei falar do mangá. ^^

Capas das edições 10/2012 e 12/2017 da Big Gangan com “Scum’s Wish” em destaque

Sinopse: “No amor, é melhor evitar confiar nas aparências…
Hanabi e Mugi formam o casal ideal: lindos, meigos e cúmplices um do outro… toda a escola os idolatra e inveja. Mas o relacionamento deles é na verdade baseado em um segredo indescritível… cada um é apenas um substituto para o outro.”


  • História e Desenvolvimento

A Mengo Yokoyari é minha mangaka favorita. Já comentei isso uma série de vezes e sempre que tenho alguma oportunidade, eu falo sobre “Kuzu no Honkai” e meu amor que tenho pela série e pela autora. Fato é que embora a obra não seja lá muito apreciada no ocidente, o título trabalha questões interpessoais e de como o ser humano pode se comportar na sociedade em benefício próprio de uma maneira não muito habitual, expor por meio de seus personagens alguns aspectos horríveis da humanidade e a partir disso, transpor o quanto os personagens (e que claro, reflete socialmente) estariam dispostos a fazer para satisfazer uma vontade, desejo, ou o próprio ego. O quanto você estaria disposto a passar por cima de alguma(s) pessoa(s) para preencher algo dentro de você? É por esse ângulo, que começamos. ^^

“Mas nós amamos outro. Nós usamos um ao outro”

Como é dito na sinopse, apesar das aparências, a Hanabi e o Mugi nada mais são do que um casal de faixada, pois na verdade, eles gostam de outras pessoas. A Hanabi gosta do Kanai, seu amigo de infância e agora professor, enquanto que o Mugi gosta da Akane, que também é sua professora e que anos atrás foi sua tutora. O encontro dos dois foi ao acaso e por uma situação de conveniência, eles acabam decidindo que iriam manter um relacionamento falso, na esperança de preencher o vazio que esses amores sem esperança deixaram.

Ao contrário de romances fofos e adoráveis, a exemplo de Yubisaki to Renren, “Scum’s Wish” está em uma pegada totalmente oposta: são amores e situações totalmente destrutivos. Scum’s Wish é essencialmente uma história de pessoas vazias, solitárias, que projetam seus desejos nos outros ou que tentam mentir para si e para quem está ao seu redor, tentando a todo custo preencher esse vazio que, a certa altura, todos os personagens centrais apresentam.

“Nós estamos saindo há algum tempo”

A maneira cujo a Hanabi e o Mugi encontram para satisfazer seus desejos é imaginar que o outro é seu interesse amoroso. Então a Hanabi projeta no Mugi a figura do Kanai, isso enquanto eles estão se beijando, e o Mugi projeta a persona da Akane na Hanabi. Com isso posto, a autora também apresenta que eles possuem algumas regras do que eles podem ou não fazer dentro do relacionamento e os limites quanto a toque, beijos e até onde eles podem ir sexualmente.

Esse primeiro volume é muito introdutório. O que vemos nele é uma gota de tudo que ainda está por vir ao longo da história. A autora estrutura as bases principais da história que vai girar em torno do Mugi e da Hanabi (na verdade, acho que outra personagem é quem faz a história andar, mas é spoiler). Ela coloca todos os personagens que são importantes na trama e que de alguma forma, cedo ou tarde, vão impactar em algo importante para os eventos da narrativa. Assim temos o Kanai, a Akane, a Ebato ou Ecchan (que é apaixonada pela Hanabi) e a Kamomebata, vulgo Moka (que é apaixonada pelo Mugi). As duas últimas, vale dizer, já desconfiam que o relacionamento entre o Mugi e a Hanabi é de faixada e que eles não gostam um do outro. Parte é porque soa falso para elas, mas outra parte é por alimentarem esperanças quanto aos seus respectivos amores. A Ecchan é mais pessimista na forma de ver, mas a Moka realmente acredita que o Mugi irá olhar para ela com outros olhos. Não posso falar muito mais, porque são spoilers, porém apesar de não aparecerem muito nesse volume, elas serão muito importantes para a história e uma adição muito boa ao elenco principal de personagens (a Moka, em particular, tem um desfecho belíssimo) ^^

A Mengo também trabalha um pouco com o passado da Hanabi com o Kanai e de como surgiram esses sentimentos dela por ele. Eu gosto que desde cedo a Hanabi tem consciência de que esse é um amor que não dará frutos, uma esperança perdida, mas ao mesmo tempo tem uma alimentação por parte dela que ela não consegue abandonar, e por isso se manteve religiosamente ligada a esse amor. A certa altura, tem um ar de inocência que eu adoro, porque embora muitas vezes as ações dos personagens (não só da Hanabi) sejam no mínimo questionáveis (moral e eticamente), são primeiros amores e gente desesperada fazendo merda. Tem um sentido substancial muito único aqui que me faz amar muito cada um dos personagens principais por diferentes motivos, mas que ao mesmo tempo, são razões semelhantes que se complementam muitas vezes. Mas assim, pode até soar “inocente”, mas isso vai mudando de tom conforme a trama avança e pior os personagens vão ficando, já que o cerco vai se fechando e eles precisam se mover cada vez mais.

E falando nisso, o que me fascina genuinamente na história são os personagens questionáveis. Tem um corte ótimo da Isabela Boscov que representa muito o que é Scum’s Wish: “E não importa o que a pessoa pareça à princípio, dê um tempinho pra ela e você vai descobrir que ela não presta. Aqui não há heróis e todos são sem caráter”. E acho que é isso. Scum’s não trabalha com uma visão de que “pessoas são boas ou más”, preto no branco. Todo mundo ali é (principalmente) moralmente questionável e nem por isso elas são essencialmente “más”. A autora explora na obra a complexidade humana no seu jeito de ser e de se comportar, principalmente em relação ao outro, na forma como vemos, tratamos e lidamos com outras pessoas, sejam aquelas que não possuem proximidade conosco, mas principalmente daqueles cujo temos contato e que gostamos. A partir disso, ela liga a questão do desejo: o que e o quanto eles estão dispostos a fazer para satisfazer uma vontade e desejo pessoal, tendo em vista uma pessoa que eles gostam, e mesmo que isso as machuque no final? Os personagens vão fazer muita merda, você vai se irritar, ficar bravo e talvez, até chorar por causa deles (a depender do quão conectado você estiver com a obra), entretanto, também há seus momentos de genuína felicidade. Esse misto de sensações que a autora consegue transpor ao longo dos volumes é o que torna a obra magnífica! E como os próprios personagens dizem: nós somos a escória. Seus relacionamentos não são feitos para serem agradáveis ou invejáveis, muito pelo contrário.

“O amor que sentimos por alguém… é um sentimento bem mais intenso e caótico que isso… é uma coisa que não podemos abandonar.”

  • Arte

Acho o trabalho artístico da Mengo Yokoyari sublime! Gosto muito da forma como trabalha com a paleta de cores nas páginas coloridas do mangá, trazendo cores mais pastéis e brincando com o azul e o rosa para criar composições muito lindas, com uma impressão doce e delicada, ao mesmo tempo que consegue ser melancólica pelo seu contexto. Na parte interna, tem dois aspectos que amo muito: o desenho da Mengo normalmente apresenta traços bem finos e que dão um ar de polidez e delicadeza incríveis, e que vão de encontro diretamente com os temas que a autora trata na obra. Ao mesmo tempo que temos essa delicadeza no desenho, temos uma parte visceral e dilaceradora pelo que acontece na narrativa. O outro aspecto vai para o quão “agressiva” a arte consegue ser em alguns momentos chave. Tudo isso combinado cria uma composição linda!

“Eu pensava que você me estava destinado. Não existe pessoa melhor que você neste mundo.”

  • A autora

Para esse post, vou começar um tópico nos meus textos de resenha é de um apanhado geral da carreira do(a) mangaka, especialmente se forem autoras, já que tradicionalmente elas sofrem apagamento nas divulgações e pouco se fala delas, especialmente se forem de demografia feminina ou se não forem autoras muito famosas.

A Mengo Yokoyari abandonou o ensino médio para ser assistente de mangaka. Nos anos 2000, ela trabalhou como assistente do Baba Yasushi no mangá “Karate Shoukoushi Kohinata Minoru”. Ela começa sua carreira profissional em 2009, publicando “Maken☆H Zemi!” na revista WOoooo! (mangás eróticos). Essa história depois foi compilada junto de outros dez contos curtos da autora em um volume único chamado “Mokkai Shiyo?“. Posteriormente e durante um tempo, ela ficou muito viciada em Vocaloids, passando a fazer desenhos desse segmento musical assinando sob o pseudônimo Yori.

Durante esse período que contribuiu e publicou na WOoooo!, ela foi convidada por um editor da Futabasha para desenhar uma história para a editora. Com isso, em 2010, nasceu “Haruwaka“, uma obra de dois volumes que marcou a autora como sendo sua primeira série. Em 2012, ela começa duas novas séries “Kimi wa Midara na Boku no Joou“, lançado na Shueisha e cujo roteiro era do Lynn Okamoto (Elfen Lied). O mangá foi publicado muito espaçadamente, tendo sido concluído apenas em 2017 com apenas 2 volumes. Em 2012 ela também começa a publicação de “Scum’s Wish” (na revista Big Gangan, da Square Enix), sua obra mais emblemática e cuja a conclusão também aconteceu em 2017, com um total de 9 volumes.

São, respectivamente: Harukawa, Mega Heart, Retort Pouch! e Isshou Sukitte Yutta jan

Em 2013, é lançado “Mega Heart“, um volume único que compila histórias da autora que foram publicadas nas revistas Ikki e Hibana (Shogakukan). Em 2014, ela estreia uma nova série: Retort Pouch!, mangá completo em 7 volumes que foi publicado na Miracle Jump (Shueisha). No começo de 2020 ela lança “Isshou Sukitte Yutta jan“, mais um volume único que compila one-shots que ela lançou ao longo de alguns anos. E por fim, em meados de 2020, ela começa “Oshi no Ko”, em que ela o faz em parceria com o Aka Akasaka (Kaguya-sama – Love is War), obra essa que impulsiona sua carreira (em termos de popularidade) fora do Japão.

Capa nacional do 1º volume de “Oshi no Ko – Minha estrela preferida

Durante toda a sua carreira, tem dois temas que sempre são recorrentes em suas obras: o sexo e personagens com ações questionáveis. “Haruwaka” é sobre duas garotas gêmeas que servem de inspiração para um garoto que é colega de classe delas e cujo hobby é desenhar mangá hentai; “Scum’s Wish” é sobre pessoas questionáveis tentando satisfazer seus desejos e projetando eles através do sexo; “Retort Pouch!” é sobre um mundo futurista em que a taxa de natalidade caiu muito e agora, escolas tentam montar “casais perfeitos” e estimular a atividade sexual para gerar crianças e famílias; e os dois volumes únicos dela, “Mega Heart” e “Isshou Sukitte Yutta jan“, trazem histórias que ora tem personagens dúbios, ora tem sexo como centro, isso quando não trabalham com os dois ao mesmo tempo.

A Mengo não é exatamente uma autora muito apreciada. Na época que o anime de “Kuzu” estreou, tinham muitas pessoas criticando o que estava acontecendo na história. Uma parte eu acho que era gente burra que não sabia interpretar o que estava sendo passado (porque eram criticas muito infundadas) e parte estava ligada à misoginia. Hoje, com esse movimento de puritanismo, imediatismo e o andamento do conservadorismo e extrema-direita no mundo, acho que as histórias tem ainda mais uma tendência a serem mal interpretadas. De toda forma, sigo aqui como um grande apreciador do seu trabalho ^^


  • A edição francesa

A edição francesa está sendo publicada no formato 13 x 18 cm, tendo capa cartonada com sobrecapa. No volume #1, a sobrecapa tinha um efeito especial que não pôde ser mais utilizado por um interrompimento da fabricação do efeito. Esse efeito foi substituído por um acabamento soft touch com verniz localizado com relevo. O papel não é especificado, mas as páginas coloridas são impressas em papel couché. O preço de capa é de 7,95 €.


  • Conclusão

Scum’s Wish é meu mangá favorito da minha mangaka favorita. É uma leitura que por vezes pode ser densa e um tanto difícil de digerir. Seus personagens podem ter ações detestáveis, no entanto é isso que os torna tão únicos e especiais. É um trabalho que você precisa entender o que ele está querendo falar e comprar essa ideia.

Fica minha enorme recomendação, tanto do mangá como do anime. E fico na esperança de que suas obras próprias ganhem mais visibilidade ^^

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