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Akane Torikai discute sobre o machismo e a misoginia na sociedade japonesa.

Não é de hoje que falamos sobre como a Akane Torikai vem se tornando cada vez mais uma autora indispensável. Seus mangás falam das mazelas da sociedade, em especial no que diz respeito às mulheres dentro da sociedade japonesa. e que facilmente conseguimos transpor para as sociedades ocidentais, incluso Brasil. Hoje, dia 22 de março, como parte do nosso pequeno e singelo especial para o Dia das Mulheres (ocorrido em 8 de março), além de um texto sobre “Jigoku no Girlfriend” (um mangá Josei da autora), também traremos a tradução de uma entrevista que a Akane Torikai deu em 2022 ao Le Figaro, época em que “Saturn Return”, sua então série mais recente, estava em publicação na França.

A entrevista foi realizada pelo Arthur Bayon e pode ser lida na íntegra diretamente pelo site do Le Figaro.


Em “Saturn Return”, a autora japonesa coloca em cena uma protagonista ambígua em um casal disfuncional. Encontro com uma mangaka feminista, agora essencial.

Ritsuko publicou um primeiro romance de sucesso, mas, desde então, tem a “síndrome da página branca”. Passando a ser dona de casa, ela vive na mentira com seu marido que sonha ter uma criança sem suspeitar que sua companheira está tomando a pílula do dia seguinte. Quando Ritsuko fica sabendo do suicídio de um velho amigo, aquele mesmo que inspirou o protagonista de seu best-seller, ela decide investigar. Seu novo gerente editorial, um jovem homem apaixonado e ardente, a acompanha…

No mundo da criação, muitas pessoas parecem pensar que um personagem principal precisa ser muito brilhante, positivo, otimista… Isso não é necessariamente algo que me interesse“, diz Akane Torikai ao Figaro, em videoconferência. Em “Saturn Return“, seu último mangá publicado pela Akata, a autora escolheu uma protagonista ambígua, “difícil de entender”, que tenta esconder seu mal-estar e suas feridas para aqueles ao redor. Uma personagem que ressoa com a sociedade japonesa em toda a sua complexidade, à qual nos apegamos à medida que descobrimos seus traumas. “Eu nunca gostei de ficções em mundos de fantasia ou que embelezam a realidade“, acrescenta a autora, cuja série anterior que foi publicada na França, “En proie au silence” [Sensei no Shiroi Uso], tratou de frente o estupro e o assédio.

A autora ama recortes [decupagem] baseado em grandes faixas horizontais ou, como aqui, verticais. “Sempre penso na minha narrativa e no meu layout como páginas duplas.”, explica ela.

Mais acessível [em termos de leitura], Saturn Return equilibra a escuridão de suas temáticas (suicídio, depressão…) com a presença de personagens mais leves, como o responsável editorial que traz uma certa dose de humor. A parte “investigativa” da história funciona perfeitamente também com sua parte de revelações e um suspense bem dosado. Este equilíbrio entre drama psicológico e humor é o resultado de uma colaboração frutífera: “Comparado aos meus mangás anteriores, Saturn Return é a obra em que eu tive mais trocas com minha editora e onde houve mais intervenções“, admite Akane Torikai. “Eu queria alcançar um público mais amplo“.

“Todo mundo interiorizou uma forma de misoginia, incluindo as mulheres, e isso é um pouco hipócrita dizer que isso não nos diz respeito. Se nós não aceitarmos esse lado escuro, não seremos capazes de reparar a sociedade”

Akane Torikai

No entanto, a mangaka não hesita em mostrar cruelmente o sexismo/machismo sofrido por mulheres, que passa pela objetificação de seus corpos ou por um suposto desprezo. “Como mulher e feminista, eu esperava que a misoginia desaparecesse completamente, mas para fazer isso, você tem que ser capaz de se comunicar com pessoas que não pensam como eu“, estima Akane Torikai, que publica seu mangá na Big Comic Spirits [Shogakukan], uma revista Seinen, cuja destinação é para homens jovens.

E para complementar: “No Twitter e nas redes sociais, as pessoas traçam uma fronteira intransitável entre a sua maneira de pensar e a dos outros. Todos nós vivemos na mesma sociedade. Quer gostemos ou não, todos esses modos de pensar estão inscritos em cada um de nós. Todo mundo interiorizou uma forma de misoginia, incluindo as mulheres, e é um pouco hipócrita dizer que isso não nos diz respeito. Se não aceitarmos esse lado escuro, não seremos capazes de reparar a sociedade.

Tradução: “Tudo vai ficar bem!”

Extremamente talentosa em representar rostos e emoções, incluindo crises de choro e raiva, Akane Torikai tira suas inspirações de séries de TV ou do cinema. “Eu sempre tive muito interesse na atuação, a maneira cujo eles interpretam os papéis e os sentimentos“, conta ela. “Na vida cotidiana, eu também costumo ser marcada por expressões ambivalentes. Ainda me lembro do rosto do meu ex-companheiro quando discutimos violentamente!

“As mulheres têm que se certificar de que são agradáveis para os homens, de facilitar a vida dos homens. Isso é algo que não acho normal”

Akane Torikai

Para os japoneses, essas emoções extremas não devem ser expressadas abertamente. Uma pressão social é denunciada pela mangaka: “As mulheres não devem ficar com raiva, devem permanecer com atitudes passivas, escutar, serem atenciosas… Assim que uma mulher expressa algo que não vai nessa direção, imediatamente colocam o rótulo de ‘mulher problemática’, ou até mesmo dizer que ela ‘é monstruosa’. As mulheres têm que se certificar de que são agradáveis para os homens, de facilitar a vida dos homens. Isso é algo que não acho normal. Tenho notado que algumas jovens pensam que se você não é capaz de ser amado pelos homens, então você não tem valor. Eu acho isso grave e problemático“.

Eu desenho os personagens e os balões de fala até a arte final, mais tarde os meus assistentes fazem os fundos [cenários], depois eu faço os sombreamentos em tons de cinza“, detalha a autora que trabalha de forma tradicional em “Saturn Return”.

Tradução:
– Haaa! Eu vou começar a me mover…
– OK
– Ei… Fumi? Estamos transando… mesmo fora dos dias férteis…
– Riri… eu… quero ver você dar à luz ao meu filho. Eu quero dormir com você… para que você se torne mãe

Retirado do volume 1, essa sequência [acima] envolve a protagonista, Ritsuko Kaji, e seu marido, Kazafumi Noda. Ela começa à direita com uma certa ternura, mas termina com o olhar paralisado da protagonista, após o choque posterior: “Eu quero dormir com você para que você se torne mãe“, resumindo o ato sexual à função de procriação. “Essa cena de sexo mostra uma discrepância entre os dois personagens que não tem as mesmas expectativas. O objetivo dele é o de procriar, mas ela gostaria simplesmente de sentir o amor“, explica Akane Torikai. “Ele está convencido que se eles conseguirem ter um filho e que isso vai consertar o relacionamento deles. Do lado dela, há um verdadeiro mal-estar, mas ela não o expressa, esconde-o de seu marido“.

Recordamos aqui que Ritsuko tomou a pílula do dia seguinte sem que seu esposo soubesse, o que não é insignificante em um país onde este medicamento só foi autorizado a partir de 1999. No Japão, o consentimento do marido é necessário para o aborto cirúrgico. A pílula abortiva ficou disponível no mercado no final de 2022… mas, mais uma vez, condicionado ao acordo com o marido. “As mulheres são privadas de sua liberdade de escolher o que diz respeito ao seu próprio corpo… É sempre ‘o de fora’ que quer controlar o corpo das mulheres“, lamenta Akane Torikai. Ela também soube da existência dessa pílula abortiva em uma HQ de Aude Picault, Idéal Standard, que sai [na França] em 24 de Junho [de 2022].

“Sempre que a maternidade ou a gravidez é evocada, todos no Japão são tendidos a mostrar apenas o aspecto idealizado”

Akane Torikai

Sempre que a maternidade ou a gravidez é evocada, todos no Japão são tendidos a mostrar apenas o aspecto idealizado: ‘É maravilhoso, é a vida no útero! Mesmo que seja difícil, você pode assumir isso!’. Isso é uma coisa que, desde a infância, tenho dificuldade em aceitar, o fato de que, sob o pretexto de que há algo de bom, é necessário apagar o sofrimento que o acompanha“, comenta a autora. Torcemos que seu mangá encoraje a abertura de um debate construtivo e a liberação da fala das mulheres após o fracasso do movimento #MeToo no arquipélago.


“Saturn Return”, mangá em discussão na entrevista, foi publicado no Japão entre 2019 e 2022 no Japão. Na França, a publicação se deu entre janeiro de 2020 e julho de 2024. A obra foi concluída em 10 volumes. No blog, nós escrevemos uma resenha do volume 1 que pode ser lida aqui.

Reforçamos que a entrevista está integralmente disponível no Le Figaro. Obrigado por lerem e não deixam de conferir o texto sobre “Jigoku no Girlfriend” ^^

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