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Mari Okazaki fala de sua carreira, mudanças no seu estilo e seu desejo de explorar novos gêneros!

Em 2023, a revista ATOM – revista que visa fazer uma ponte entre Japão e França, promovendo edições trimestrais com entrevistas com diversos autores – fez em sua 25ª edição, uma edição especial para celebrar as autoras do mangá. A revista foi intitulada “O Poder das Autoras” e trouxe como destaque, a Mari Okazaki, autora inédita no Brasil, mas que foi amplamente publicada na França no começo dos anos 2000 e que hoje em dia, permanece quase que abandonada pelas editoras do mercado.

Se tratando de uma autora que eu adoro – nós falamos do trabalho dela aqui no blog com “& (AND)“, no ano passado -, resolvi traduzir a (longa) entrevista feita para a revista. A entrevista não está disponível online, acessível apenas no número 25 da ATOM e que, infelizmente, já se encontra indisponível para compra nas livrarias francesas.


A escolha das almas

No começo dos anos 2000, o leitorado francês – em plena busca de identidade – encontrava enfim, Mari Okazaki. Autora de uma grande contemporaneidade, apaixonada pela pintura tradicional e dotada de um senso de impacto herdado de sua experiência na publicidade, ele se tornou uma das principais assinaturas do mangá para mulheres. Mas a acuidade do seu olhar e a audácia da sua quadrinização não podem ser contidas dentro dos contornos estritos de uma classificação. De volta às nossas livrarias com “& (AND)” (finalizado no ano passado [2022] e publicado pela Kana), esta artista reverenciada no Japão merecia um lugar de destaque neste número.

Essa é uma ilustração que a Kana deu como wallpaper de celular. Vocês podem baixar ela gratuitamente no site da editora ^^

ATOM – Seu pai era professor em biotecnologia e você foi com ele para o Canadá, onde você foi escolarizada durante um tempo. O que você lembra dessa experiência e ela teve algum impacto na sua vocação?

Mari Okazaki – A escola primária [nosso Fundamental I] que eu frequentava propunha um ensinamento muito voltado às artes plásticas. Eu pude, assim, mensurar a qual ponto ela [a arte] podia ser um formidável meio de comunicação, especialmente quando te faltam palavras… Eu me lembro que um artista visitava frequentemente nossa classe para comentar nossos trabalhos. A atmosfera em geral era, portanto, muito propícia para a criação! Sabe, a natureza é particularmente inspiradora inspiradora no Canadá; e como o país passa a metade do ano debaixo da neve, o preto e o branco acabavam se tornando as “cores” da nossa imaginação… (ela reflete) É também nesta época que eu comecei a me interessar pela pintura japonesa – um domínio que me fascina até hoje. No entanto, eu não considerava especialmente me tornar uma mangaka: eu esperava sobretudo ter a possibilidade de viver dos meus desenhos.

ATOM – Apesar da distância de seu país natal, o mangá era presente na sua vida cotidiana?

Mari – Sim, graças à minha vó que me enviava uma vez por mês, um pequeno pacote do Japão. Ela colocava várias revistas de pré-publicação, periódicas como a Nakayoshi, por exemplo. É um título que todas as jovens garotas conheciam aqui e que, na época, teve como força motriz o mangá “Candy Candy” [mangá da Kyoko Mizuki e Yumiko Igarashi, publicado entre 1975 e 1979]. (ela reflete) É muito provável que todas essas leituras tenham acabado por me colocar no caminho do mangá…

ATOM – Além de você, há outros artistas na sua família?

Mari – Não realmente. Com exceção de um ancestral distante que era haikista [autor de haiku, um tipo de poema japonês], mais ninguém… Aliás, quando eu escolhi entrar em uma faculdade de arte, todo mundo da minha família se perguntava o que esse tipo de curso poderia levar. E quando eu quando eu os avisei que queria me tornar mangaka, eles não estavam particularmente entusiasmados, se é que você me entende…

ATOM – Foi no colégio [Ensino Médio] que você começou a enviar seu trabalho para certas revistas e a ganhar prêmios. Qual foi a sua primeira publicação [revista/editora] que você abordou?

Mari – Eu acho que foi a revista Fanroad (revista dedicada a fan-fiction, lançada em 1980 e encerrada em 2012, depois de muitas mudanças de editoras). Mas você sabia, eu procurei tantas editoras que eu não me lembro mais precisamente quem foi a primeira que eu solicitei primeiro! Graças à minha tenacidade, em todo caso eu ganhei muitos prêmios e acumulei uma boa quantia, de quase dois milhões de ienes ao longo do caminho. Nos anos 1980, o Japão atravessava um período econômico muito rico: haviam muitas publicações e concursos e, portanto, múltiplas ocasiões de ganhar dinheiro e para ser notado.

Capas francesas de “Gin ni Naru” e do volume #2 (de #4) de “Shibuyaku Maruyamachou

ATOM – É verdade que quando um editor da revista Fanroad te pediu para desenhar um mangá, você foi comprar um volume de “Urusei Yatsura” para ver quantos quadros haviam por página?

Mari – Esta é uma anedota absolutamente autêntica! Eu fui na livraria para comprar um volume de Urusei Yatsura, mas também, um exemplar de “Cat’s Eye“. Eu queria ver como eram feitos os mangás populares na época. Mais tarde, eu tive outros “modelos”: autores como Yoshihara Tagami, que eu amava muito por “Karuizawa Syndrome” (1981), Hisashi Eguchi pelo seu excelente “Stop!! Hibari-kun” [1981-1983], Atsushi Kamijô [autor de “TO-Y“] e, evidentemente, Katsuhiro Otomo [autor de “Akira“, lançado no Brasil pela JBC].

ATOM – E entre as autoras de Shoujo?

Mari – Eu diria Sakumi Yoshino [diria que um dos trabalhos mais emblemáticos é “Shounen wa Koya wo Mezasu“] e Yumi Tada [“True Blue wa Kesshite Iro Asenai“; “Red Velvet“]. (ela reflete) Eu sei que o Shoujo não é muito popular fora do Japão. Eu adoraria que o talento dessas artistas fosse finalmente reconhecidos no estrangeiro…

ATOM – Quando se é uma mangaka debutante que vive nas províncias, como se organizar num nível estritamente material?

Mari – É verdade que na minha região, perto de Nagano, eu não tinha acesso a certas ferramentas. Eu aproveitava, então, das minhas ocasionais passagens em Tóquio para renovar o material. Eu ia em uma loja em Shinjuku onde eu procurava telas que eu utilizava com muita moderação. Como eu não podia me permitir a aumentar minhas idas e vindas até a capital, eu tinha que ser vigilante quanto à minha consumação de material…

ATOM – Na sequência, você passou a criar suas próprias telas, não é?

Mari – De fato. Mas saiba que isso não é excepcional: muitos mangakas também criam suas próprias… No que me diz respeito, foi em “A Un” [2014-2021] que eu criei as minhas. Eu precisava duplicar padrões específicos para os quimonos dos personagens, eu então utilizei um certo tipo de papel, que eu recortei e depois colei, o que me permitiu “fixar” o design das minhas estampas.

Capas japonesas dos volumes #1 e #14 (último) de “A Un

ATOM – Suas escolas parecem ter sido guiadas por um grande pragmatismo: por exemplo, quando você entrou na Universidade de Belas Artes de Tama, você optou pelo departamento de design, porque o preço do material para acessar a seção de pintura japonesa era muito alto para você…

Mari – Eu não tinha outras opções. Eu venho de uma linhagem de produtores de saquê e sou a mais velha entre os irmãos, então todo mundo esperava que eu assumisse o negócio da família e assim, continuasse a tradição. Mas eu preferi alçar novos ares e para isso, eu tive que fazer escolhas “pragmáticas”, como você disse. Se na faculdade eu escolhi o departamento de design ao invés do de pintura japonesa, foi unicamente porque ele oferecia mais oportunidades. Eu precisava comer, então tive que optar pelos caminhos profissionais mais seguros.

ATOM – Atualmente, quando você desenha páginas duplas com personagens em roupas tradicionais, é a sua maneira de demonstrar sua paixão pela pintura japonesa?

Mari – Sim, e eu sei que quando eu for mais velha e não tiver mais energia para desenhar mangás, bem, muito provavelmente eu vou me converter em pintora de pintura tradicional japonesa…

ATOM – Qual corrente você prefere?

Mari – O ukiyo-e. Mas eu não estou unicamente olhando para o passado: eu também aprecio o trabalho de artistas mais contemporâneos e que também fazem pintura japonesa.

Capas francesas de “12 Kagetsu” #1 e “Kanojo ga Shinjatta” #1 [um dos poucos Seinens da autora]

“Eu sempre tive, desde pequena, mil e uma ideias de histórias na cabeça. Estas podiam ter diferentes formas: pintura, ilustração, mangá ou mesmo publicidade… Finalmente, o mangá é apenas uma das formas que eu decidi privilegiar.”

Mari Okazaki

ATOM – Depois de seus estudos de design, você entrou para a célebre agência de marketing Hakuhodo, na qual você permaneceu por mais de dez anos… O que você aprendeu ao longo dos anos e que considera útil hoje em dia no seu trabalho de mangaka?

Mari – Na Hakuhodo, nós mantínhamos campanhas publicitárias. E foi assim que fui enviada para viajar pelo mundo inteiro e eu pude trabalhar nos Estados Unidos – notavelmente em Hollywood, onde eu pude assistir à filmagens e ensaios fotográficos. Lá, eu encontrei fotógrafos e estilistas que tinham vitrines, pessoas criativas muito exigente com as quais não se podia comprometer. Era necessário se alinhar com seus perfeccionismos e eu acho que foi a coisa que mais me marcou e inspirou neste trabalho. Quando eu desenho meus mangás hoje, eu tento manter esse estado de espírito: eu quero dar o melhor de mim e ter orgulho do que conquistei.

ATOM – Parece que seu patrão da época te encorajava a desenhar mangás no seu tempo livre…

Mari – Sim, ele era favorável que eu o fizesse. Aliás, ele era assim com toda a sua equipe: ele nos encorajava a ter atividades artísticas em paralelo, porque ele sabia que essa liberdade de ação nos aflorava. No nosso departamento, tinha também uma pessoa que era roteirista para os dramas [séries] da NHK [emissora de radiodifusão japonesa], uma outra que era modelo etc.

ATOM – Em 1994, ocorreu o que você mesma chama de “verdadeiras estreias profissionais”, na revista Bouquet [1978-2000] da editora Shueisha. Suas primeiras histórias curtas publicadas – que encontramos em “Vague à l’âme” [Bathroom Guuwa] – já demonstram uma grande maturidade, tanto em substância quanto em forma. Você pensa que o fato de ter começado seriamente tendo quase 30 anos te permitiu propor histórias mais incorporadas e controladas, por justamente você ter mais de experiência?

Mari – Eu sempre tive, desde pequena, mil e uma ideias de histórias na cabeça. Estas podiam ter diferentes formas: pintura, ilustração, mangá ou mesmo publicidade… Finalmente, o mangá é apenas uma das formas que eu decidi privilegiar.

Capa francesa de “Bathroom Guuwa

ATOM – Você relê alguns de seus trabalhos de juventude?

Mari – Certamente não. E não preciso ir muito atrás na minha carreira: eu não quero nem mesmo reler o capítulo que eu desenhei na semana passada, senão, eu terei vontade de retocar ! (risos) Não, eu prefiro não olhar para o passado e permanecer concentrada no que devo fazer neste momento.

ATOM – A publicidade não é uma excelente escola para o mangá? Aprendemos a ser precisos na mensagem, a desenvolver uma narrativa pulsante…

Mari – Um comercial publicitário no Japão, dura tradicionalmente quinze segundos. E quando se trabalha neste tipo de produção, em geral, é necessário enviar ao cliente várias versões diferentes, para que ele possa escolher e termine por escolher O que mais lhe corresponde. Inevitavelmente, dar à luz tantas versões implica uma grande criatividade e de resiliência, qualidades que são mais do que essenciais quando você quer fazer ficção… (ela reflete) Sabe, se a publicidade me fascinava, era porque todos os cineastas que eu amava na época – fim dos anos 180 e começo dos anos 1990 – tinham passado por esta escola [publicidade]: Jean-Jacques Beineix, Leos Carax, Luc Besson…

ATOM – Você se inspirou muito no cinema estrangeiro, assim como outras célebres autoras de Shoujo antes de você?

Mari – Eu sou uma expectadora assídua desde que eu era estudante, período o qual eu frequentava muito as salas de cinema. Isso me influencia no meu trabalho? Eu te responderei dizendo que, para mim, existem dois tipos de mangaka: aqueles que foram tocados pelo cinema e querem transcrever o realismo, e aqueles que têm a animação como ponto de referência principal. (ela reflete) Não sei se estou certa em dizer isso, mas eu acho que os autores influenciados pelo cinema muitas vezes veem seus mangás sendo adaptados em live-action, enquanto aqueles que foram influenciados pela animação são bastante adaptados em anime.

ATOM – Seus mangás muitas vezes foram adaptados em drama…

Mari – Sim, e na semana passada, um episódio de “Kashimashi Meshi” (série adaptada do mangá homônimo inédito na França [e no Brasil] – nota do editor) foi exibido na TV… Eu estou, aliás, muito contente com o resultado, o diretor e o produtor estão muito envolvidos nesta adaptação. (ela reflete) O grau de envolvimento dos mangakas nestas séries depende muito do relacionamento que eles mantém com a equipe de produção. Geralmente, você é solicitado na etapa do cast, a fim de validar a escolha de atores e atrizes. Depois, você tem a possibilidade de reler o roteiro e fazer algumas sugestões. Mas depois, você se separa de tudo e deixa as pessoas trabalharem tranquilamente.

Capas japonesas dos volumes #1 e #7 (o mais recente) de “Kashimashi Meshi

ATOM – Durante quanto tempo você continuou trabalhando na publicidade e fazendo mangá em paralelo? Nas ‘pequenas palavras’ endereçadas aos leitores de “Déclic amoureaux“* [Shutter Love] você conta ter finalizado o último capítulo da história em um hotel em Los Angeles, durante uma viagem de negócios…

Mari – Eu fiquei onze anos na Hakuhodo e eu desenhei mangás durante todo esse período. Mas era difícil para mim me comprometer com uma série de longo prazo e ao mesmo tempo, continuar com minhas atividades na publicidade. (ela reflete) Sabe, naquela época, era muito complicado para uma mulher no Japão conciliar a vida profissional e a vida famíliar. E quando eu comecei a refletir sobre a possibilidade de ter crianças, a decisão de sair da agência foi natural.

*No original, aparece escrito “Déclic affectif”, um erro, pois esse mangá não existe. Creio que houve uma mistura entre “Déclic amoureaux” e “Complément affectif“, outro mangá da Mari Okazaki publicado na França ^^

ATOM – Mais cedo, você citou o nome de Atsushi Kamijô e seu mangá “BX” é, às vezes, muito próximo de seu estilo gráfico…

Mari – Eu penso que o que posso ter pegado emprestado dele, é a sua maneira de libertar-se dos diálogos durante um clímax. Onde outros recorreriam a ela, ele consegue criar uma sequência forte apenas por meio do poder sugestivo de seu desenho.

Capas francesas de “Shutter Love” e “DX

“Quando eu concebi as histórias para “Le Cocon” [Yawarakai Kara], eu tinha em mente o cinema francês […] eu não tinha um estilo gráfico muito definido […] eu experimentava muito.”

Mari Okazaki

ATOM – Você participou da aventura da revista Cookie [Shueisha] desde sua criação em 1999. Em entrevista, você declarou muitas vezes que esta revista era para você um verdadeiro espaço de liberdade. O que diferenciava a Cookie das outras revistas da época?

Mari – Por volta do fim dos anos 1990, muitas novas revistas nesse estilo surgiram – eu penso, por exemplo, na Cutie Comic [Takarajimasha], que foi lançada quase ao mesmo tempo que a Cookie. O objetivo destas publicações era unir as leitoras que tinham passado para a idade adulta e não eram mais realmente o alvo das revistas Shoujo que liam na sua infância/adolescência. Ter um público leitor mais maduro permitia a esses periódicos propor uma linha editorial mais diversificada – mesmo que o romance sempre tivesse um lugar importante nas histórias que eram publicadas. E no que me diz respeito,, eu me senti mais livre de escolher meus contos e eu pude, enfim, criar as personagens segundo meus próprios desejos.

ATOM – Sua passagem na Cookie marca uma primeira muda no seu desenho: quando lemos as histórias curtas publicadas na coletânea “Le Cocon“, sentimos o seu traço mais afiado, notavelmente nos rostos…

Mari – Imagine que quando eu concebi as histórias para esta coletânea, eu tinha em mente o cinema francês! Eu me lembro que naquela época, eu não um estilo gráfico muito definido e eu particularmente não buscava ter um, aliás… eu experimentava muito e é provavelmente por esta razão que você sentiu uma evolução na maneira de desenhar.

Capa francesa de “Yawarakai Kara

ATOM – Hoje, você ainda busca “experimentar”?

Mari – Claro. Além de “Kashimashi Meshi” para a FEEL YOUNG [Shodensha], eu desenho para a Big Comic Spirits [Shogakukan] um mangá intitulado “Haibaiyoushi Mizuiro” (2022, inédito na França [e no Brasil] – nota do editor) que se desenvolve no mundo da medicina. É sobre inseminação artificial e eu ilustro esta temática de acordo com uma abordagem gráfica ligeiramente diferente. Mesmo a maneira de organizar meu trabalho, a redação da revista mudou, desde então tenho que atender muitas solicitações do departamento editorial sobre o roteiro. É desafiante, e eu amo isso.

ATOM – Você também mudou de ferramentas, porque você passou do analógico para o digital, quando você desenhou o mangá de época “A Un“…

Mari – De fato, é porque antes da publicação de “Kashimashi Meshi“, eu comecei a trabalhar no tablet. Mas efetivamente, tudo se acelerou no momento da criação de “A Un“, e foi uma razão bem precisa: a COVID. Inicialmente, eu planejei desenhar o mangá de maneira “tradicional”, mas a pandemia me interrompeu e tive que reorganizar meu ateliê. Como eu não podia mais acolher assistentes, e como eu estava sozinha, era mais cômodo para mim mudar para o digital. A mudança não foi tão brutal, pois durante muito tempo tempo, eu desenhava de maneira um pouco “híbrida”, passando de uma técnica para a outra. Sabe, é um pouco como um pintor que desenhava exatamente a mesma pintura, primeiro em pintura a óleo, depois em aquarela: finalmente, são apenas os utensílios que mudam. Então sim, você inevitavelmente deixa impressões diferentes se você desenha no papel ou em um tablet. Há ainda, certas expressões que você só pode obter trabalhando com o digital. E hoje, é esse gênero de possibilidades que eu espero explorar.

Página colorida de “Kashimashi Meshi” na edição de Setembro/2024 da FEEL YOUNG

ATOM – Sua primeira colaboração com a Shodensha foi feita com o título “Après l’amour, la sueur des garçons a l’odeur du miel” [Sex no Ato Otokonoko no Ase wa Hachimitsu Nioi ga Suru], não é? Como você teve a ideia deste título, que evoca os célebres romances pornográficos da Nikkatsu dos anos 1970?

Mari – É engraçado você me falar desse título em particular, porque originalmente eu me opus muito a sua utilização! Foi a redação de Zipper Comic, criado pela ShuCream Inc. (estrutura de produção editorial externa que trabalha para várias editoras em projetos ligados ao mangá para mulheres – nota do editor) que fez campanha para mantê-lo e que, finalmente, me convenceu. Os leitores desta revista era muito assíduo de mangá, era preciso chegar em um título que fosse um pouco chocante, entende? No fim, mesmo tendo sido eu que o encontrei, saiba que ele absolutamente não era minha primeira escolha! (risos)

ATOM – Na Shodensha, você pôde abordar assuntos mais adultos em relação aos seus trabalhos precedentes com outras editoras?

Mari – Eu me lembro que quando entrei n Shodensha, a presidenta da ShuCream Inc. desejava criar uma revista dedicada para as Ladies Comic – mangás que se endereçam à leitoras mais velhas e, portanto, com conteúdo frequentemente mais erótico. A ideia era de propor histórias que abordassem muito abertamente a questão da sexualidade das mulheres no Japão. Eu concebi “Après l’amour, la sueur des garçons a l’odeur du miel” mantendo essas especificações em mente. Foi uma novidade para mim, e achei muito estimulante.

Capa francesa de “Sex no Ato Otokonoko no Ase wa Hachimitsu Nioi ga Suru

ATOM – Podemos dizer que “Complément affectif” [Suppli] constitui o primeiro ponto de virada importante na sua carreira? Até então, você só havia feito histórias curtas ou one-shots [volumes únicos], e então, você começa a sua primeira série, que também é inspirada pela sua experiência na publicidade…

Mari – Entre os mangakas, são raros os que puderam ter a experiência do “seishain” (ser empregado em tempo integral em uma empresa e por um período indeterminado, às vezes, por toda a vida profissional – nota do editor). Tendo experienciado isso – a empresa, suas regras, sua hierarquia -, eu me dizia que poderia ser interessante usar isso para contar uma história. E mais, naquela época, eu tinha acabado de ter meu primeiro filho, e como eu não podia me mover livremente para coletar documentação ou mergulhar em ambientes desconhecidos, eu devia privilegiar um assunto que eu dominava.

ATOM – Você demarcou limites no que diz respeito a dimensão autobiográfica da história?

Mari – Claro, tinham coisas das quais eu não podia contar. Pelo menos, que eu não podia dizer como eram, e que eu logicamente tive que romantizar para incluí-las no meu mangá. Eu penso, por exemplo, no episódio do suicídio de uma colega, evento trágico e que realmente aconteceu conosco… Então não pulei nenhuma parte da minha vida profissional, então acho que revelei quase tudo… Espere, sim, há um elemento que eu inventei do zero: a presença de homens bonitos na história. Isso é ficção pura! (risos)

Capas francesas dos volumes #1, #9 e #11 (último) de “Suppli

ATOM – Com “& (AND)“, sua abordagem à “mulher ativa” é um pouco diferente do que em “Complément affectif“. A personagem da Kaoru, por exemplo, é mais evanescente, mais insondável… Era a sua intenção?

Mari – O primeiro objetivo em “& (AND)” era explorar o tema da trabalho duplo. Para a Kaoru, eu não desejava a definir segundo uma tipologia de mulher forte: sua personagem precisa dos outros para florescer e é graças ao seu entorno que ela pode, enfim, se encontrar. Para o restante, como o mangá trata de dois ambientes profissionais diferentes – o mundo hospitalar e o da manicure -, eu tive que descobrir sobre esses universos, que em seguida, eu eu transcrevi no mangá de maneira muito “pura”, eu diria. (ela reflete) Essa abordagem também me trouxe algumas dificuldades na montagem, em comparação às minhas obras anteriores… Enfim, o outro ponto sobre o qual eu me concentrei muito foram as cenas de sexo. Eu queria que elas fossem o mais tangíveis possível…

ATOM – Você passou muito tempo projetando e depois desenhando as cenas de sexo?

Mari – Antes de começar a trabalhar em “Complément affectif” e “& (AND)“, eu foi publicada em algumas revistas Seinen. Então eu desenhei cenas de sexo para estas publicações, e eu percebi que a maneira de fazer era muito diferente se visamos um público masculino ou feminino. Eu não posso ser categórica, mas eu tenho o sentimento quando nos dirigimos uma cena de sexo para os leitores [homens], você deve focar nos detalhes anatômicos, entende? Precisa ser frontal e cru. Por outro lado, se você o faz para as leitoras, sua abordagem é diferente: é mais provável que você use sua imaginação e o resultado pode ser mais elíptico, mais onírico também…

Página de “&” na ATOM

ATOM – “& AND)” é também a primeira série que você assina depois da sua maternidade. Claro, você já abordou sobre o seu cotidiano de mãe no mangá autobiográfico “Hinemosu Kyomi” (2010, inédito na França [e no Brasil]), mas mais amplamente, o fato de ter se tornado mãe mudou alguma coisa na sua maneira de olhar suas histórias?

Mari – Eu, talvez, seja um caso particular, porque eu comecei a desenhar séries longas depois do nascimento dos meus filhos. O fato de ter me tornado mãe de alguma forma “empoderou”: de agora em diante, tento pensar em histórias que possam perdurar ao longo do tempo e que não sejam mortas pela raiz. Eu devo manter um certo volume de produção para viver, e para isso, preciso me propor histórias sólidas, que eu sei que conseguirão me manter ocupada por um momento.

ATOM – Desde o fim de “& (AND)” em 2014, você constantemente parece estar a procura de novos terrenos ficcionais: você claramente continuou com alguns romances, mas você também cedeu à história de época “A Un“, depois colaborou com o romancista Moegara para o volume único “Anata ni Kikasetai Uta ga Arunda” (2022, inédito na França [e no Brasil]), além de trabalhar em “Kashimashi Meshi” para a FEEL YOUNG e também com “Haibaiyoushi Mizuiro“. Você tem medo de ficar entediada?

Mari – Se eu senti a necessidade de explorar outro lugar, é porque explorei profundamente o romance com “Complément affectif” e “& (AND)“. Então tenho a vontade de tentar gêneros inéditos, porque eu sou uma eterna insatisfeita procurando permanentemente novos desafios. Desculpe-me se isso parece um pouco pretensioso! (risos)

Capa japonesa de “Anata ni Kikasetai Uta ga Arunda” e do volume #1 de “Haibaiyoushi Mizuiro

E esta foi a entrevista! Obrigado por lerem até aqui. A Mari Okazaki, como deu para ver, tem uma longa carreira e com uma bibliografia incrível. Eu infelizmente só tive oportunidade de ler um de seus trabalhos e esse contato só se deu ano passado. É infinitamente uma pena que ela permaneça sendo uma autora ignorada no cenário editorial brasileiro, mas também é uma pena que uma autora amplamente publicada na França nos anos 2000, tenha a grande maioria de seus trabalhos completamente indisponíveis no mercado (tirando “&”, todo o restante não é possível se encontrar volumes impressos para adquirir, nem mesmo em formato digital).

Espero que algum dia, eventualmente, não só a autora seja recuperada no mercado francês, mas também, chegue ao Brasil. Seus trabalhos são sem dúvida alguma, merecedores de nossa atenção ^^

Reitero que a entrevista está disponível no volume 25 da revista ATOM, entre as páginas 10 e 28 da edição. E até a próxima!

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