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Definitivamente, o mundo sem o ser humano é um lugar melhor

No dia 2 de março, último domingo, fui ao cinema com meu irmão mais novo e uma amiga para assistir ao filme “Flow”, a animação letona que ganhou o Oscar de 2025 por “Melhor Filme de Animação”. E embora seja uma produção ocidental, coisa que é totalmente fora do público do blog, bem como fora daquilo que o blog se propõe, quis escrever um pouco sobre ele por ter aspectos bacanas naquilo que o filme conta e mensagens que ele pode querer passar.

Sinopse: “Gato é um animal solitário, mas quando seu lar é destruído por uma grande inundação, ele encontra refúgio em um barco habitado por diversas espécies, tendo que se juntar a elas apesar das diferenças.”


Bem, não é um grande mistério a premissa do filme, principalmente a essa altura do campeonato. “Flow” conta a história de um gato que está sozinho em uma dada região e que tenta sobreviver como dá: passa aos arredores, procura comida, dorme… Mas o grande problema é: a água está subindo e está subindo muito. Não demora muito para aquela casa onde ele vivia, e cujo o dono evidentemente tinha um amor por gatos, dado a quantidade de esculturas que ele havia feito e estava fazendo, ser completamente tragada pelas águas. Fugindo dali, o gatinho encontra com um barco ‘comandado’ por uma capivara e a partir dali, segue viagem juntos enquanto acabam encontrando outros animais no caminho.

Nesse barco, além do gatinho preto e da capivara, ainda teremos: um lêmure que sai coletando coisas e as tratando como tesouros pessoais; um cachorro (Golden) super bobão e completamente adorável; e uma secretária (ave) que em certo ponto, vai nutrir algum tipo de relação proximal com o gato e gerenciar o barco como um todo. Pois bem, a água não para de subir e seguimos esses animais que não se conheciam, que não conhecem os hábitos um do outro e que têm naturezas diferentes entre si. Algo que gosto na representação dessa turma toda é que embora tenham alguns momentos que sejam enviesados, e aí, não tem muito como fugir já que somos seres humanos produzindo algo e isso parte de uma perspectiva, a representação dos animais sendo animais propriamente é muito boa! A direção acerta primorosamente na reprodução de ações características de gatos tais como a forma de pular, de andar, de se esgueirar, de estranhar outros indivíduos e até mesmo a dilatação e contração das pupilas. Tudo é milimetricamente bem feito.

Algo que conversei com minha amiga quando a sessão terminou é que sim, tem coisas ali que são meio humanizadas ou facilitadas, como os animais saírem no comando de um barco, mas são recursos necessários para o andamento da história e que não é que se duvide da capacidade de aprendizado dos animais, mas retratar esse momento poderia não ser interessante narrativamente falando. Mas ela também levantou uma ideia bacana em que ela comentou que uns tempos atrás, viu um vídeo de um biólogo pregando a competição e predação por tudo na natureza, seja no campo mais amplo, como dentro da própria espécie, o que minha amiga não concorda, porque existe uma relação de colaboração entre seres vivos diferentes. SIM, predação, competição etc., é uma realidade recorrente, claro, porém, a colaboração não é impossível e nesse caso nem se referimos tanto a casos como simbioses (exemplos clássicos: líquens, a associação de algas e fungos; os protozoários que vivem dentro dos cupins para digerir a celulosa), mas de ações que podem trazer algum benefício mútuo. Minha amiga lembrou de um caso de uma espécie de macaco e de ave que são predados por hienas e foi observado que os macacos e as aves passaram a colaborar de forma que se as aves vissem as hienas, elas avisavam os macacos e eles jogavam pedras nas hienas para afugentá-las. Em plantas, por exemplo, nectários extraflorais podem ser aliados e formar uma “parceria” com formigas. Na mamona, as formigas pegam o néctar produzido por esses nectários (eles ficam na base das folhas) e elas protegem a planta de outros predadores.

Durante o filme, em diversos momentos, os animais se estranham, observam o comportamento do outro, saem “no tapa”, alguns são mais abertos como o cachorro que é sempre muito “dado” e anseia por um contato próximo, enquanto outros são mais fechados,como a ave ou o próprio gato, que tende a manter uma postura mais ríspida, e no entanto, aprendem a colaborar entre si pela sobrevivência do grupo. As relações entre eles não são lineares, são inconstantes, ora estão boas, ora estão ruins, o que combina com o próprio cenário do filme que é de uma grande incerteza de pra onde ir e onde tudo aquilo vai dar.

Pode-se ver o filme com uma visão mais distanciada e simplista se quiser como sendo apenas uma realidade alternativa em que humanos se foram e animais fofinhos cooperam para tentar sobreviver no desconhecido. Porém, prefiro ver como um paralelo do processo pela qual o planeta está atravessando com as mudanças climáticas. O tempo do ser humano está passando (e acabando, provavelmente), com o filme tendo um retrato já da extinção da espécie humana e o aumento da água pode ser visto como um reflexo direto do aquecimento global e fim do período de glaciação do planeta. Essa é uma concepção mais interessante, pois traz alguns elementos de conexão da natureza e como ela se restaura sem os humanos para destruí-la.

Três filmes foram lançados ano passado e que fizeram um bom sucesso, trabalham em determinado ponto e a certa altura, com essa conexão da natureza: “Flow“, que escrevo agora, “Robô Selvagem” da DreamWorks, sobre uma robô doméstica que vai parar em uma ilha não habitada por humanos e que, por uma dada razão, precisará cuidar de um filhote de ganso, e “Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa“, em uma aventura do Chico Bento, personagem do Mauricio de Sousa. “Robô Selvagem” eu infelizmente não tive a oportunidade de ver (ainda), mas sei que ele trata de assuntos como a beleza da natureza, mas não como algo puramente lindo e maravilhoso, ou na visão do ser humano: bem e mal; mas também como algo difícil, duro e que de fácil não tem nada. Em “Chico Bento”, esse eu assisti, tem uma passagem em particular que acho brilhante. Em dado momento, mais lá para o fim do filme, há uma reflexão sobre a natureza e as concepções humanas sobre ela e entre aspectos como escuta, cooperação e entendimento, temos uma com certa árvore, em que o Chico é reimaginado como uma árvore e diz que está com fome e quer comer uma goiaba. A goiaba cai no chão e o que é dito é que ele precisa esperar ela se decompor, virar matéria e então poder absorver pelas raízes. Não vou entrar em detalhes, mas todo esse segmento no filme do “Chico Bento” achei lindíssimo, e quem interpreta a árvore estava sublime no papel, ao ponto de chorar um pouquinho. Amo muito as plantinhas e queria que recebessem mais atenção e cuidado, mas como tudo nessa sociedade capitalista: se não tem uma utilidade, é automaticamente descartável. E mesmo que tenha (como as plantas têm) se não for para um propósito considerado válido ou lucrativo, pode matar, derrubar, pois está “atrapalhando o progresso”. E está aí, “o progresso” que tanto se prega, logo vemos que é um retrocesso enorme. Há muito mais beleza nas conexões com a natureza do que nessas selvas de pedra que tentam vender como o auge das civilizações.

Eu poderia fazer N recortes sobre a concepção de “o ser humano destruir o planeta”, pois poderíamos resumir a maior parte dos problemas da humanidade como sendo frutos do capitalismo, e é verdade. Porém não consigo não pensar que o ser humano já está fazendo hora extra nesse planeta. A gente “sobra” aqui. Mas fato é que esse tipo de produção poderia despertar interesse nas pessoas em olhar para a natureza com mais atenção e o cuidado que ela merece. Temos uma tendência a desdenhar daquilo que tratamos como inferior ou menos inteligente, mas lhes garanto: há muito de interessante a se observar em cada espécie, em cada ser vivo e claro, há beleza em cada um deles.

Um a parte aqui: eu fui pegar a sinopse do filme no Google e no Adoro Cinema, a sinopse começa com “Em Flow, o mundo parece ter chegado ao fim“. Um dos meus problemas com a mentalidade do ser humano é que ele é egocêntrico e se dá mais importância do que ele realmente é. “O mundo parece ter chegado ao fim”, mas tudo está lá: o planeta continua lá, os animais estão lá, as plantas estão. E assim será. O tempo do ser humano está acabando e quando o ser humano for embora, porque sim, duvido que se consiga parar o processo agora, o planeta continuará aqui. Um bocado de plantas e animais vão junto (e já estão indo, na verdade), mas essencialmente, vai continuar. Quando a linhagem dos hominídeos apareceu, o planeta já estava formado, com uma forma diferente, é verdade, mas já estava aqui. Enfim, só um pouco do meu ódio por esse tipo de colocação sendo que ‘tudo bom???’, se coloque no seu lugar, por favor.

Fiz essa volta toda para dizer que são filmes lindos. Com abordagens diferentes, mas que estão conversando, em algum ponto, ‘do mesmo assunto’. Tem uma beleza grande na construção das relações ao longo do filme, que são elas sim inconstantes e que no fim das contas, faz parte. “Flow” está tratando de um processo de mudança da Terra como estamos passando agora. O filme não teme exatamente um “fim” por se tratar de um processo de mudança em curso. Nem tudo que começou, vai terminar bem. Nem todo ser vivo vai chegar ao fim. É triste e um pouco mórbido, mas é o que é. Aconteceu e acontece. E assim ocorre sucessivamente ao longo dos milhares de anos da história vida do planeta.

Em resumo: é uma viagem (literalmente), cheia de bons e maus momentos. E mesmo que nem tudo saia como o esperado no caminho e esse caminho não seja claro, acompanhar a história deles foi algo muito prazeroso. ^^


O blog chegou a receber um convite para assistir o filme semanas antes da estreia oficial no Brasil como imprensa, mas como eu ainda estava tendo aula, não pude ir (mas agradecemos o convite!!!). Em todo caso, fico contente por ter conseguido ir ver no cinema e ter tido a experiência. Feliz de ter visto, feliz pela vitória do filme e pela conquista do Oscar, mas também de tantos outros prêmios, ainda mais considerando ser uma produção independente, feita por uma equipe enxuta de animadores, desbancando grandes estúdios de animação ocidentais, e principalmente, por trazer um fomento grande ao cinema na Letônia, despertando o interesse do governo local em investir na produção cinematográfica do país, bem como tornando o gatinho um verdadeiro símbolo nacional (e isso sim é patriotismo. ^^).

PS: às vezes falo de filmes ocidentais no meu perfil no Letterboxd 🙂

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