Além de casamento, há muitas outras pressões para lidar...

“Me casei com uma colega para calar os meus pais”, ou no original “Oya ga Urusai node Kouhai to Gisou Kekkon Shitemita”, é um mangá de Naoko Kodama. A obra foi publicada no Japão em 2018 na revista Comic Yuri Hime da editora Ichijinsha, sendo concluído em apenas um volume. No Brasil, a obra foi anunciada pela NewPOP em janeiro de 2022. Passado meses do anúncio, a editora o lançou oficialmente em outubro. Adquiri o mangá e venho compartilhar minhas opiniões sobre ele ^^.

Sinopse: “Desde criança, Machi seguiu o caminho traçado por seus pais. Ao começar a trabalhar em uma empresa listada na bolsa de valores, achou que estaria livre deles, no entanto, passaram a insistir para que ela se casasse. Cansada de ser controlada, acaba arranjando um casamento de fachada com sua amiga Hana, que no passado havia se declarado a ela. Machi pareceu meio constrangida em viver ao lado dela, mas ao mesmo tempo sentia-se inesperadamente confortável… Além dos capítulos referentes à história que dá título a este mangá, esta coletânea de obras ainda inclui o one-shot “Amor anaeróbico”.”


  • História e Desenvolvimento

Naoko Kodama é mais conhecida pelo seu (terrível) mangá “Netsuzou Trap – NTR” (inédito no Brasil), devido a adaptação em anime que o mesmo teve alguns anos atrás. Graças a esse mangá, se criou o imaginário de que é preciso ter certa distância ou cautela dessa autora e de suas obras. No entanto, eu diria que Naoko Kodama é uma autora que precisamos estar bem atentos. NTR foi um fruto de sua época e do que estava popular no Japão naquele período (o que vemos acontecer de tempos em tempos em diversas demografias) e a própria autora no final de “Me casei com uma colega para calar os meus pais“, nos conta que gosta de desenhar obras “dark” (questionáveis). Enfim, “Me casei” é mais do que uma prova de que ela merece sua atenção.

O título do mangá diz muito sobre o qual assunto ele quer e vai tratar. Porém tem uma série de pormenores e coisas que são apenas mencionadas ou deixadas no ar, que fazem a totalidade do mangá ser algo bem “mais completo”, por assim dizer. Quando se faz parte de grupos vulneráveis da sociedade, a cada “degrau” se torna ainda pior de lidar com problemas, porque tende a ser uma escalada. Você ser pobre, te torna vulnerável. Você ser pobre e preto, mais ainda. Você ser pobre, preto e LGBT+, ainda mais, e assim por diante. E podemos começar tratando da pressão para se casar. No contexto do mangá temos a Machi, que é uma personagem com uma certa idade e seus pais estão incessantemente fazendo pressão para que ela se case. E não com qualquer pessoa. São pretendes que os pais consideram como vencedores, com bons empregos e salários, aqueles que, em teoria, garantiriam um futuro promissor. Nesse aspecto, mulheres tem que aguentar mais pressões para casórios do que homens, afinal, para eles, de forma geral, se dedica a mentalidade de que pode ser “criado livre”, enquanto que as mulheres precisam encontrar um homem o quanto antes para “cumprir suas funções”. Assim a Hana, sua amiga, se aproveita dessa situação para propor um casamento arranjado, dando um basta nessa história.

Embora o casamento de pessoas homossexuais não seja reconhecido no Japão, há algumas prefeituras que oferecem um certificado semelhante ao de união estável (falamos um pouquinho desse assunto quando tratei de “Boku ga Otto ni Deau Made“). A ideia não é nem um pouco bem-vista pelos pais da Machi. A partir desse ponto, passamos a acompanhar a vivência da Machi com a Hana, especialmente pela ótica da Machi, que está morando com alguém pela primeira vez desde que saiu da casa dos seus pais.


Questões sociais com mulheres são sempre mais pesadas do que com homens, porque é mais difícil dado o contexto. O próprio mangá faz questão de nos mostrar na prática, já que no trabalho da Machi, ela acaba ouvindo a conversa dos seus chefes sobre a possibilidade dela receber uma promoção pelo seu bom trabalho, porém um deles logo fala que ela é mulher, sendo um problema por correr o risco de largar tudo por causa de casamento ou gravidez. Esse, aliás, é um dos fatores pela qual a taxa de natalidade no Japão segue em declínio: não há segurança para as mulheres. As próprias empresas veem mulheres como problema, porque se estiverem grávidas, viram prejuízo, não querendo contratá-las. O matrimônio está cada vez mais ligado a ser como uma prisão para as mulheres, visto que os homens não querem que elas trabalhem, que fiquem em casa cuidando de afazeres domésticos e dos filhos. Não podem ser independentes. O lar é um martírio ou sua sentença de prisão. Um ambiente nada favorável para desejar casórios ou filhos. O chefe da Machi até fala ao final se não seria melhor entregar o serviço para jovens rapazes para que ganhem experiência no trabalho. Para as mulheres, é isso. Não basta ser boa. Tem que ser impecável. Não pode cometer erros ou deslizes. Só aí, quem sabe, ela consiga algum reconhecimento pelo seu esforço e trabalho. É preferível passar o trabalho para homens sem experiência, do que arriscar com uma mulher.

Outro assunto que me pegou muito durante a leitura da obra foi a pressão que os pais da Machi colocam nela para ser sempre a melhor em tudo. Isso é mostrado especialmente vindo da mãe, que é quem eu acredito que ela tivesse mais contato por ficar, imagino eu, em casa. A minha relação com minha mãe sempre foi muito boa e sempre fomos muito próximos. Porém, não posso negar que já ouvi muito das frases que a autora coloca na obra, entre elas: “Nota 9? Por que você não conseguiu tirar 10?”, “Não me desaponte! Estou dizendo isso para o seu bem!”, entre outras mais que me fizeram refletir que parte da minha maneira de agir, seja comigo mesmo ou da maneira que interajo (ou não) com outras pessoas, vem muito dessas frases sendo repetidas ao longo de anos. Se hoje eu me autossaboto ou me sinto frustrado com quase tudo que faço por não estar “perfeito”, parte vem desse tipo de comentários dos meus pais. A Machi cresceu com uma tendência individualista, pouco expressiva e sem um rumo que ela queira seguir, porque foi impossibilitada de poder refletir e tomar suas decisões, ou pelo menos dizer o que pensa. E conversando com uma seguidora do blog no Twitter, ficamos pensando que se com a gente, nós sofremos pressões familiares em algum grau seguindo a mesma linha de ‘obter sucesso’ ou de ser sempre o melhor, imagine no Japão que se prega muito essa espirituosidade de que você tem sempre que dar o máximo de si, mesmo que você não aguente mais (e torna ainda pior quando se pensa que a mídia ocidental gosta de romantizar isso). É algo que não dá para se ter dimensão completamente.

É importante reforçar que apesar de eu estar comentando desses temas, definitivamente não são o ponto principal da série. São assuntos que, como eu disse, aparecem ao longo do mangá de forma esporádica. A ‘pegada’ do mangá é essa de ser um pouco mais levinho, com humor e clima adorável. Esses momentos mais soltos e deixados no ar pela autora, às vezes chegam como um verdadeiro soco, a exemplo do momento da “libertação” que a Machi tem em um determinado momento da história. Não vou descrever a cena e ao invés disso, vou trazer algo pessoal meu e que combina com o contexto daquele momento. Especialmente para quem LGBT+, o ambiente familiar pode não ser dos mais receptivos e acolhedores. No meu caso, não pela minha mãe, mas sim pelo meu pai. Ambos não sabem que sou gay e nunca me assumi, mas meu pai é a figura do pai homofóbico. Toda vez que ele abre a boca para falar sobre pessoas LGBT’s, é com comentários como “tem que matar” e que se ele pudesse, prenderia e mataria todos a tiros. Graças do bullying da escola ao longo de anos e da hostilidade do meu pai em diversos momentos, meu psicológico foi para o espaço. Acabo sendo muito instável emocionalmente, o que por vezes, me faz querer não existir. Tem uma certa página que me pega muito, em que nós temos a Machi pensando: “Será que… se eu puder sair daqui… conseguirei me sentir mais livre?“. Essa frase é muito do que eu penso sobre estar em casa. Não posso ser como sou e agir como quero por causa do meu pai. Até comentei no meu post sobre o Anime Friends 2022 que um dos motivos que o evento se tornou tão especial para mim, foi por eu enfim poder agir como sou, sem me preocupar com o risco de ser agredido ou sofrer algum tipo de de violência. Então o sair de casa, por mais distante que possa estar, ainda é uma das minhas esperanças, é o que a certa maneira, me permite continuar lutando.

Desde criança, fui muito influenciado por filmes de romances dramáticos e água com açúcar, e idealizei aquilo que consumi na mídia. Um dos meus maiores sonhos é me casar. Sei que não será como nesses filmes, mas o ato, o símbolo que isso traz, realmente me encanta. Mas também de coisas mais simples, como receber flores. Nenhuma dessas duas coisas aconteceu ainda, mas são algumas dessas que me fazem querer continuar tentando e esperando. Quando acontecer, porque eu espero que aconteça, espero poder compartilhar com vocês e torço para que naquela altura, eu esteja mais feliz ^^.


Bom, chega de reflexões depressivas da minha parte e continuando com a resenha, o restante do mangá é uma graça! É muito bom ver o desenvolvimento da Machi junto à Haru, com a mudança de mentalidade da protagonista. De alguém que acha incômoda a convivência com a Haru, para alguém que de fato não quer estar sozinha, achando divertida a companhia e que é bom saber que tem alguém te esperando quando volta para casa. A Haru é bem ousada e é uma personagem muito carismática, sendo bem fácil de gostar. Temos direito a um pouco de drama, o que faz as personagens se moverem e tomarem uma decisão final quanto ao relacionamento que elas estabeleceram.

E como é dito na sinopse, a obra também inclui um one-shot intitulado “Amor anaeróbico“. Por ser um capítulo bem curtinho, acho melhor não falar muito do conteúdo dele. No entanto, tenho que dizer que gosto do ar melancólico que esse capítulo traz. Gosto daquele tipo de personagem que a autora fez!


  • A Edição Nacional

“Me casei com uma colega para calar os meus pais” foi lançado formato 15 x 21 cm. Tem pouco mais de 160 páginas impressas no papel Off-set 90g, sendo duas 2 coloridas e impressas em papel couché. O preço de capa é de R$ 39,90. Quanto a aspectos físicos, é uma edição bonita. Segue os padrões da NewPOP de papel e miolo costurado. O Dih e a Iara fizeram um ótimo trabalho na edição, com a capa e a diagramação do volume. Gosto bastante das cores e a lombada é bem clean, simpatizando muito com ela. Não encontrei erros de revisão (aviso que não sou a melhor pessoa para achar esse tipo de erro) e o texto está muito bom! Bem fácil de ler, com exceção de momentos que eu trocaria a posição de algumas palavras ou a palavra em si (exemplo de “esta” por “essa”). Abaixo vocês veem um vídeo mostrando a edição nacional em detalhes.

Agora, apesar disso, esse preço realmente não entra na minha cabeça. Um mangá de 160 páginas, com apenas duas coloridas, que não tem sobrecapa, orelha, laminação especial ou verniz, por 40 reais, não bate. O que acaba pegando nesse caso é que a pré-venda dele começou ao mesmo tempo que “Diário da Minha Experiência Comigo Mesma“, que é no mesmo formato, porém com preço R$ 29,90. A editora comentou que para o “Diário“, eles conseguiram negociar com a gráfica e manter o preço antigo, o que não aconteceu com “Me casei“. Mas por terem saído juntos, causa aquele espanto, ainda mais que Diário é em duas cores, ao contrário deste volume desta review. O que poderia ter sido feito é ao menos distanciar um pouco o lançamento de cada obra, porque quem vê ‘de fora’, pode acabar pensando que Diário compensa mais do que Me casei, o que pode ser muito ruim para a obra.

O preço dessa obra me faz pensar sobre os próximos lançamentos. Estamos indo para o final do ano e tradicionalmente, é o momento que as editoras informam de reajustes de preço… O mercado brasileiro não parece promissor (isso faz tempo). Em todo caso, é preciso selecionar bem o que irá dar uma chance e espero que essa resenha tenha ajudado a decidir se compensa comprar 🙂


  • Conclusão

Esse foi meu primeiro contato com uma obra da Naoko Kodama e estou muito satisfeito. Foi uma narrativa sólida, bem guiada e construída. Trouxe temas importantes, seja do casamento de pessoas do mesmo sexo ou de pressões familiares e sociais, quanto ao nosso comportamento e o que se espera de nós. Os personagens são uma graça e de forma geral, é uma delícia de ler, tanto que li o volume rapidamente, em cerca de 1 hora (o que não é comum na minha rotina).

Apesar do preço que não entra na conta, com um desconto, vale a pena pegar. E sugiro ficarem de olho na autora para “Uminekosou Days“, anunciado pela NewPOP e ainda sem previsão de lançamento. Se “Me casei com uma colega para calar os meus pais” já é muito elogiado, Uminekosou é ainda mais! No demais é isso, nos encontramos em outras postagens de resenha, de animes ou notícias 🙂

Capas japonesas de “Uminekosou Days” #1 à #3

  • Ficha Técnica
  • Título original: Oya ga Urusai node Kouhai to Gisou Kekkon Shitemita. (親がうるさいので後輩 と偽装結婚してみた。)
  • Título nacional: Me casei com uma colega para calar os meus pais
  • Autora: Naoko Kodama
  • Serialização no Japão: Comic Yuri Hime
  • Editora japonesa: Ichijinsha
  • Editora nacional: NewPOP
  • Quantidade de volumes: Volume único
  • Formato: 15 x 21 cm, capa cartonada
  • Quantidade de páginas: 162
  • Papel: Off-set 90g
  • Preço de capa: R$ 39,90
  • Compre em: Amazon/Loja NewPOP

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