Dando continuidade aos nossos textos de resenhas do mês de Agosto, hoje é a vez de falar de mais um mangá que não foi publicado no Brasil. O mangá da vez é “Saturn Return”, da majestosa Akane Torikai!
“Saturn Return” (サターンリターン) é um mangá escrito e ilustrado por Akane Torikai. A obra estreou em 19 de Janeiro de 2019 na revista Big Comics Spirits (Seinen) da editora Shogakukan. O mangá foi publicado até Outubro de 2022, sendo concluído em 10 volumes. A obra foi indicada ao 28º Tezuka Osamu Cultural Prize (2024). E para falar do mangá, estarei usando o volume 1 da edição francesa ^^
Sinopse: “Ritsuko Kaji é uma romancista que sofre da síndrome da página em branco… Mas quando uma noite ela sonha com um de seus ex-amigos, sua vida diária vira de cabeça para baixo: quando ela acorda, ela descobre sobre o suicídio dele… Ao mesmo tempo em que se sente sufocada pela vida de dona de casa, é tomada pela lembrança de um ente querido já falecido. Forçada a confrontar o seu passado, ela regressa a Osaka com seu novo editor, mas esta viagem pode trazer sentimentos dolorosos à tona…”
- História e Desenvolvimento
Falar de Saturn Return não é exatamente uma tarefa fácil, isso porque o mangá é muito denso, um dos primeiros volumes mais densos e difíceis de processar/digerir que já li. Mas bem, a história parte da Kaji, que há 5 anos atrás, lançou um livro intitulado “Le pays de la sieste” (algo como “O país/terra dos cochilos”) e ele tornou um grande best-seller e, no entanto, depois desse grande sucesso, ela não conseguiu escrever mais nada. Na verdade, esse livro foi escrito a pedido de um amigo da Kaji – chamado Nakajima – que “prometeu” que se suicidaria antes dos seus 30 anos de idade e que antes de sumir deste mundo, ele gostaria de algo fosse deixado registrado sobre ele, como uma forma de ser lembrado e eternizado, de certa forma. A Kaji escreve esse livro de forma tão voraz como uma tentativa um pouco desesperada de tentar salvar o amigo, o que não tem efeito e o que vemos, anos mais tarde, é a concretização da sua “promessa”.
Eu digo que esse é um mangá um pouco complicado de comentar sobre, porque ele é um tanto difuso e difícil de definir. Ele fala sobre muitas coisas e é como se fosse um pequeno recorte da vida dos personagens, em especial, da Kaji, e é como se você fosse jogado naquela confusão sem saber muito sobre aquelas pessoas, então a obra vai e volta ao passado, mostra algumas coisas sem grande contexto e há sempre uma sensação de estranhamento ou de mal-estar entorno da Kaji. As obras da Akane Torikai são muito pautadas em temas pertinentes da sociedade, frequentemente abordando abuso, machismo e misoginia e, embora esse não seja o tema central aqui (não nesse primeiro volume pelo menos), outra característica muito recorrente nas obras da autora é a maneira como ela aborda seus personagens e temas, mesclando uma visão sólida sobre a sociedade, mas também, de uma maneira um cínica. E é aí que mora o ponto, enquanto você lê o volume, é muito perceptível o tom de cinismo que exala do mangá, em especial, novamente, da Kaji.
A Kaji é uma mulher já ali perto dos 30 anos e é casada com um homem, o Fumi, que ‘trabalha’ de casa – e na verdade, parece que ele está com algum tipo de bloqueio/impossibilidade – e que também quer muito ter um filho da Kaji. É dito logo no começo pela própria Kaji que o Fumi a salvou e no entanto, mais parece que ela está presa a esse relacionamento do que outra coisa. Embora eles não briguem, os dois mentem. A Kaji esconde coisas do Fumi e o Fumi mente sobre coisas mais banais para ela. Esse desejo exacerbado de ter um filho parece maltratar muito a Kaji, que não só não parece querer ter esse filho, como faz de tudo para não engravidar. O marido pergunta (por mensagem) onde ela está e ela responde que está fazendo X, quando está fazendo Y, mas não é como se você sentisse que pena do Fumi ou que ela fizesse puramente por “maldade”, porque no fim das contas, eu não consigo ver aquele relacionamento como algo bom e a grande impressão é de que ela precisa ter esse espaço dele, porém, ao mesmo tempo, ainda fica a impressão de que a narração dela não é exatamente confiável e essa sensação perdura e aumenta ao longo de todo o volume.
Essa impressão aumenta a medida que o Koide, o novo editor responsável da Kaji entra na história. O Koide é um jovem editor muito proeminente e que faz o seu trabalho de uma maneira muito competente. Ele passa a ser o editor responsável pela Kaji e é um grande fã da autora. Já no primeiro encontro dos dois, ele totalmente entusiasmado pergunta se o personagem principal de “Le pays de la sieste” é inspirado em alguém, pela maneira que o personagem foi escrito, o que ela prontamente rejeita e segue rejeitando a todos que perguntam para ela. Os dois vão acabar se aproximando quando a Kaji estava indo ao velório do Nakajima e ela encontra o Koide casualmente. Na verdade, ela disse para o marido que estava indo para o velório, quando era uma grande mentira e ela nunca saiu de Tóquio. Motivado a tentar ajudar a Kaji a recuperar o fôlego criativo, ele a convence a ir até Osaka ver o Nakajima e visitar a residência dele, com o intuito de que talvez, ela se sentisse um pouco motivada a escrever sobre o luto/perda.
O que gosto no Koide é que assim como a Kaji, ele é completamente questionável. Ele vive só em um apartamento e esse apartamento foi “”invadido”” pela Maki, uma garota que ele ficou uma vez e no entanto, se instalou no apartamento e está lá morando há semanas. Mesmo ele pedindo para que ela vá embora, ela não só não vai, como ainda assim, não é como se ele conseguisse se afastar dela completamente. Ele não trata a bem, mas sempre que quer transar, ele tem ela lá. É uma situação que incomoda ela estar lá, mas é conveniente para ele ao mesmo tempo. A maneira como ele enxerga o Nakajima, de uma maneira que pouco importa a morte da pessoa e o interesse maior é que a Kaji consiga escrever novamente – muito por ele ser fã da autora e menos por ser o trabalho dele – é algo bem interessante.
Fato é que para todo lugar que ele vai, ele encontra alguém comentando para que ele tome cuidado com a Kaji, porque ela é a “Deusa do mau presságio”. Gosto da Akane Torikai colocar isso para a perspectiva do Koide, porque não só abre margem para trabalhar com misoginia, mas também porque vai remontar aquela impressão de que a narração dela não é exatamente confiável. Como não conhecemos bem nenhum dos personagens e só temos pequenos flashs da vida deles até aquele ponto, tudo é posto a prova e colocado como dúbio/enviesado, porque é assim que acontece na vida real. E de toda forma, essa maneira desconfiada que você sente ao ler o mangá é como um fio condutor para te prender na trama.
Há momentos em que as mentiras que a Kaji contam soam como se fosse um jogo para ela e não sei, não é bem como se ela se divertisse com isso, porque por vezes, o que ela joga no ar são informações mais sérias, mas é como se a todo momento parecesse um grito de desespero ou mesmo a sensação de falta de propósito em viver que a trama traz. Como uma tentativa de tornar a vida mais tragável e interessante, a certa altura. Tem coisas mal contadas, outras que são mistérios para o que vem nos próximos volumes e há uma necessidade em ver como tudo isso será amarrado pela autora.
Naquela sensação de mal-estar, a Akane Torikai consegue combinar perfeitamente o fato dos personagens estarem em transe ou em fluxo, ao mesmo tempo que são inconstantes e não sabem exatamente o que eles querem ou desejam. São personagens completamente falhos e isso os torna tão interessantes. A autora conseguiu expor para o mangá personagens que a todo momento vão parecer reais. Vejam: eles riem, choram, mas mais do que isso: mentem, sofrem, são mau educados por vezes, se sentem presos e perdidos, mostram seus lados mais lamentáveis e até patéticos de serem, além de fazer você sentir uma falta de sentido ou propósito em suas vidas, com elas apenas levando os dias… A morte do Nakajima e mesmo antes dela, com aquela ameaça de que ela poderia se concretizar (o que de fato aconteceu) parece torturar a Kaji de uma maneira que quando ela soube que ele morreu, tudo foi completamente ao chão e ela não sabe mais o que fazer, tanto pela perda do amigo – que há uma impressão de que talvez ela gostasse dele mais do que como amigo – como ela passar a se sentir como ele.
A frase “A vida é uma sucessão de perdas” vai ressoar durante todo o volume e imagino que nos próximos também, de tal maneira que o ponto colocado em torno dessa frase – de que a repetição dos dias, constantemente, é assustadora e desoladora – vai ser o grande fio condutor da narrativa. A Akane Torikai demonstra, ao longo do volume, como isso pode ser assustador, até mais do que morrer propriamente. Há páginas com cenários abertos, com só a protagonista em cena, mostrando e evidenciando a imensidão e a solidão. É absolutamente arrebatador!
- A Arte
Além da narrativa muito densa, a Akane Torikai usa seus desenhos para expressar os sentimentos duvidosos e a grande impressão de que os personagens estão em transe. São páginas e mais páginas com composições lindas, com personagens muito expressivos, conseguindo demonstrar desde o sentimento de perda a até a impressão de solidão e desespero com um único quadro, além de um ótimo uso de composição e de quadrinização das páginas. O que torna a experiência de leitura ainda mais complexa!
- A Autora
A Akane Torikai nasceu em 1981, em Osaka. Seus anos escolares não foram lá muito tranquilos e ela encontrava um apoio nos mangás que ela lia. É no Ensino Médio que ela tem contato com obras da Kyoko Okazaki (autora de “Helter Skelter”), ficando impressionada com o trabalho da autora e funcionando como um ponto de virada para ela. Dado que o âmbito cultural dos anos 1990 era fortemente masculino, o trabalho da mangaka a marca profundamente. Em 2004 ela estreia como mangaka na revista Bessatsu Shoujo Friend (Kodansha), passando esses primeiros anos de sua carreira fazendo histórias curtas. Em 2010, na Morning Two (revista Seinen da Kodansha), ela estreia sua primeira série: “Ohayou Okaeri“, publicada até 2013, sendo concluída com 5 volumes. E é em 2013 que temos o ano de virada na sua carreira, com o lançamento dos primeiros volumes de “Onna no Ie”, Josei publicado na BE LOVE (revista Josei da Kodansha) e, ao mesmo tempo da publicação de “Onna”, ela estreia “Sensei no Shiroi Uso” (publicado na França como “En proie au silence“) na Morning Two, ambos concluídos em 8 volumes. Em 2014 ela estreia na FEEL YOUNG (revista Josei da Shodensha) com “Jigoku no Girlfriend” (estreou hoje na França com o título “Enfer et contre toutes“. Já em 2015, tivemos o lançamento de dois volumes únicos: o Seinen “Zenryaku, Zenshin no Kimi” (na França, como “Sans préambule“) pela Shogakukan e “You’ve Gotta Love Song“, pela BE LOVE.
Nos anos seguintes, alguns trabalhos de grande destaque são o Josei “Mandarin Gypsy Cat no Roujou” (Le siège des exilées) publicado pela Da Vinci, “Romance Boufu Iki” (Amour Placebo), publicado pela Fusosha, ambos de 2 volumes, além de claro, “Saturn Return“, publicado pela Shogakukan. Neste ano de 2024, ela volta a Kodansha e começa “Bad Baby wa Nakanai“, na revista Morning.
- A edição francesa
O mangá, assim como todos os demais mangás da autora, foi publicado pela Akata na França. A obra foi lançada entre Fevereiro de 2022 e Julho de 2024 no formato 12,8 x 18,2 cm (semelhante a “given” aqui no Brasil), com capa cartonada e sobrecapa, além de páginas coloridas no começo do volume. O volume 1 tem 230 páginas e foi lançado a 8,25 €. Abaixo, vocês podem vir um vídeo mostrando a edição francesa do mangá ^^
- Conclusão
Eu sou um grande fã da Akane Torikai pelo tipo de temática que ela trabalha em suas obras, trazendo crítica social e denúncia ao machismo e misoginia (principalmente aquela internalizada nas pessoas). E aqui, ela além de trazer um pouco disso, ainda trabalha com personagens que por vezes, são moralmente questionáveis, um tipo de personagem que eu amo particularmente (não a toa, meu mangá favorito é “Scum’s Wish“). A narração, os mistérios e essa grande sensação de mal-estar servem como um fio condutor muito apreensivo e instigante para o que virá a seguir com esses personagens. Não é uma leitura simples e pode ter gatilhos pelos temas que trabalha, mas é sem dúvida, um mangá muito interessante! Por fim, deixo aqui a thread da tradução que fiz da entrevista que a Akane Torikai deu a um site francês ^^
- Ficha Técnica
- Título original: Saturn Return (サターンリターン)
- Título francês: Saturn Return
- Autora: Akane Torikai
- Serialização no Japão: Big Comic Spirits
- Editora japonesa: Shogakukan
- Editora francesa: Akata
- Quantidade de volumes: Completo em 10 volumes
- Formato: 12,8 x 18,2 cm
- Quantidade de páginas: 230
- Papel: —
- Preço de capa: 8,25 € (aproximadamente R$ 50,75 [cotação de 26/Julho/2024])