Uma abordagem sobre família e homofobia.

Uma abordagem sobre família e homofobia.

Estranho à Beira-Mar” é escrito e ilustrado por Kii Kanna. O mangá nasceu em 2013, sendo planejado inicialmente como um capítulo único. A obra foi lançada com o título “Umibe no Étranger” (海辺のエトランゼ) na revista onBLUE, revista BL da editora Shodensha. Devido ao sucesso, sua decisão de serialização foi tomada sendo publicado entre 2013 e 2014 na mesma revista, rendendo um único volume. Ainda em 2014, a obra ganhou uma continuação intitulada “Harukaze no Étranger” (春風のエトランゼ) (não anunciada pela NewPOP) e que está em andamento com 4 volumes no Japão, sem previsão de término. Kii Kanna é famosa dentro e fora do Japão, como uma das autoras de BL de maior destaque atualmente, seja pelos seus roteiros ou pela sua arte de tirar o fôlego.

Em Outubro de 2019, foi anunciada uma adaptação para filme animado de “Estranho à Beira-Mar”. Com produção do Studio Hibari (Studio “mãe” da Lerche), o longa tem cerca de 60 minutos de duração e foi ao ar nos cinemas japoneses em 11 de Setembro de 2020. No Brasil, o filme foi licenciado pela Funimation, tendo sido disponibilizado na plataforma em 9 de Julho, com o título “The Stranger by the Shore”.

O mangá foi anunciado no Brasil pela NewPOP em 28 de Outubro durante uma live da editora. A obra foi lançada no Brasil entre o final de março e o começo de abril. Adquiri a edição nacional e venho compartilhar minhas impressões sobre o mangá ^^.

Sinopse: “Há 3 anos, eles se encontraram à beira da praia de uma ilha isolada em Okinawa. Shun Hashimoto, gay, iniciando sua carreira como escritor, se interessa por Mio Chibana, um colegial que passa seu tempo de forma apática, e o chama para sair. Com o passar dos dias eles foram se aproximando cada vez mais, porém Mio teve que se afastar da ilha. Após 3 anos, Mio retorna à ilha e pressiona Shun dizendo “Pensei durante 3 anos. Mesmo sendo um homem, eu gosto de você.” Mas Shun, por sua vez, quando finalmente pode se tornar namorado de Mio, não consegue dar o próximo passo e…”


  • História e Desenvolvimento

Na história de “Estranho à Beira-Mar” conhecemos o Shun, um jovem escritor que mora junto da irmã e seus avós em uma ilha isolada na região de Okinawa. Um dia, ele repara em um estudante colegial sentado em um banco à beira da praia. Dia após dia, esse jovem, chamado Mio, senta-se no banco e passa a tarde no local todos os dias, o que chama atenção do Shun. A monotonia do jovem, junto de seu ar melancólico e solitário, atrai o Shun e desperta sua vontade de querer saber mais do garoto.

Mio é uma pessoa solitária. Ele perdeu seus pais muito cedo e passou a viver de favor na casa de parentes. Seus dias são sem emoção, em um marasmo que o prende e não o deixa criar conexões com outras pessoas. Ele passa seus dias mantendo distância ‘de casa’. Não é como se seus parentes fossem ruins, mas a solidão e sentimento de não pertencimento aquele local, o afasta. Não é um ambiente que ele se senta em casa e que de fato pareça com uma família. Nesse contexto, o Shun entra como a figura que passa a mudar essa percepção. O Shun tenta criar oportunidades para conhecer o Mio e, embora sua primeira tentativa de criar um diálogo tenha sido um tanto “crua”, não demora muito até o Mio ir se aproximando. O personagem que nas primeiras páginas da obra não esboçava nenhuma reação além da mesma cara solitária, passa a sorrir quando é convidado a jantar pela família do Shun. O ambiente alegre e acolhedor, logo toma o garoto que passa a se sentir mais a vontade.

Porém, como nem tudo são flores e felicidade de pobre dura pouco, o Mio irá se mudar para a ilha principal da região, sendo aquele um dos últimos momentos dos dois juntos naquela ocasião. Passam-se três anos, até o momento que o Mio retorna e temos o fim do primeiro capítulo. Como é dito no começo desse post e a autora comenta no posfácio do mangá, a obra foi inicialmente pensada como one-shot. Quando o primeiro capítulo encerra, você tem uma clara percepção de que uma história foi de fato contada ali. O capítulo por si só, tem começo, meio e fim, por mais que algumas temáticas sejam deixadas de lado, sobretudo no que envolve essa questão do Mio com sua família. Existe uma construção ao longo dessas quase 50 páginas, com uma narrativa simples sendo criada, mas bem instigante e de uma maneira que te deixa com uma vontade de ler mais. Por isso que fez sucesso e a história foi continuada, seja aqui, até formar a compilação de “Estranho” ou na sua próxima continuação (Harukaze). E percebam que o que se passa nessas primeiras 50 páginas é basicamente o que é descrito na sinopse. Há detalhes que fazem essa composição ser tão agradável e interessante no seu próprio roteiro e não no que está necessariamente escrito, mas que é nos passado pelas expressões dos personagens e pelo próprio desenho da autora que, apesar de não estar nos níveis atuais, já era excelente!

A partir desse retorno é que podemos ver a relação do Mio, agora adulto, e do Shun. Se no 1º capítulo, nós vemos muito da visão do Shun sobre o Mio e como ele absorve as coisas que acontecem ao seu redor, daqui para frente na história, nós acompanharemos muito mais do ponto de vista do Mio, o que ele pensa, o que sente, como lida com a distância entre ele e o Shun, além de passarmos a ver mais do personagem em si e o que ronda ele. De fato conhecemos o personagem realmente, o que é legal no sentido de que vamos ter impressões da visão do Mio sobre o Shun, indo ao oposto que acontecia no comecinho da história. Aliás, gosto de como a autora consegue amarrar bem a história. É estruturada de uma maneira que ela sabendo da possibilidade de continuar a história, deixa meios para que pudesse prosseguir a trabalhar a relação dos personagens.

Mas enfim, passaram-se 3 anos, e de repente, Mio está de volta. Coisas mudaram, promessas não foram cumpridas, e agora? Os personagens inicialmente lidam bem com isso. Mesmo sem contato, conseguem se relacionar de uma forma muito semelhante de quando se conheceram. O que fica como pendência é o relacionamento amoroso deles. Já no começo, o Shun deixa a vista que ele sofreu homofobia e teme muito se relacionar com alguém. Não só o relacionamento, mas principalmente alguém que ele não tem certeza que gosta de homens, como se estive levando o outro para o mesmo caminho de dor que ele passa, principalmente no contexto que o personagem sabe que o Mio gosta de garotas também (relevem a inexistência da palavra “bissexual” no mangá… É um título de 2013, então né…)

Não irei entrar em detalhes aqui para não dar spoiler, porém vemos aqui a relação de famílias do interior. Se em uma sociedade, o tradicionalismo de certas questões é conservador e gera preconceitos, com famílias do interior, principalmente as de regiões mais isoladas, tendem a serem ainda mais ultrapassadas e preconceituosas. Vemos muito dessa questão na obra, casamentos arranjados e forçados, o manter as aparências e ter que seguir aquilo que seus pais querem. O Shun foge da família dele e ao longo da obra, e com a vinda de uma certa personagem ao seu encontro, esses sentimentos vêm à tona.

E claro, nesse caminho o Mio está lá. Ver como ele lida com essa dita pessoa é bem interessante, em especial porque o Mio é ‘alguém de fora’, que não teve anos de contato com o Shun e não conhece muito do passado de seu amado, o que é quase o oposto do Shun, que sabe as pendências que ele tinha com sua família. O Mio entra nessa história como uma espécie de intermediário, quem vai conciliar o problema. Conflitos vão sendo criados, mas de forma geral, a autora leva os temas com certa leveza, enquanto os trabalha nos momentos certos, com a seriedade que é necessária. A leitura flui muito bem e quando menos se espera, já estamos no final do volume. Estranho é um mangá divertido. Tem um drama na medida certa e uma conclusão bem satisfatória, com um leve ar de esperança e recomeço para ambos. Os dois, em essência, são solitários e veem no outro, o ponto de segurança com quem podem contar. Brigam, discutem, mas conversam e se acertam. Ver eles se ajudando e sendo o ombro um do outro, passando assim, a serem a família um do outro. É uma relação de companheirismo muito boa de ver o desenrolar de sua narrativa.

No meu modo de ver, há algumas questões que sim poderiam ter sido melhores desenvolvidas. O espaço de um volume para tratar tudo é limitado. É natural que algumas pontas tenham que ficar de lado. Existe a continuação, mas você pode ler “Estranho à Beira-Mar” de forma independente tranquilamente. Inclusive, se você não é um leitor assíduo de BL, nunca leu algum ou leu muito pouco, Estranho à Beira-Mar é uma excelente pedida! Os temas trabalhados e os personagens são ótimos (e carismáticos), a arte é deslumbrante e o melhor, é volume único. Para aqueles que querem algo levinho, é uma boa sugestão de compra. Ele quase não tem teor sexual e só tem uma cena no final do volume. No demais, ele é bem tranquilo nesse sentido. “Estranho à Beira-Mar” se tornará minha recomendação para novos leitores, tal qual “JOY” é atualmente ^^.


  • Arte

Como comentei, o desenho de “Estranho” não é o auge da autora, mas mesmo aqui, era algo de tirar o fôlego em alguns momentos. A Kii Kanna tem um desenho extremamente rico em detalhes. Só de olhar a capa dá para ter uma pequena noção do que ela é capaz de fazer. Cada quadro é algo absolutamente belo de se ver. Ela tem uma noção de espaço muito boa e tem quadros que a autora pega para desenhar cenário, com vários detalhes que só valorizam o todo. Sério, é deslumbrante. Até por isso fico curioso com “Harukaze”. O volume 4 dessa continuação saiu em 2021. Então é um volume com uma arte de quase 10 anos de evolução depois de “Estranho à Beira-Mar”. O que já era LINDO aqui, imagine agora!

A única coisa que me incomoda e isso é um problema da edição nacional é a questão do moiré. Explicando rapidinho para quem não conhece: os mangás usam retículas que são utilizadas para fazer as sombras, efeitos nos ambientes, dar textura e até maior noção de tridimensionalidade aos cenários. Quando a imagem não está devidamente preparada, essas retículas não se misturam e ficam muito demarcadas. Você consegue ver elas ali. Normalmente eu nem reparo nessas coisas, até porque, quem está mais ligado à essas questões é quem tem maior noção sobre quadrinhos mesmo. Mas enfim, nesse volume tem partes que fica muito feio ao ponto dos personagens ficarem “quadriculados” (imagens abaixo). E como a autora gosta de detalhar seus desenhos usando muita retícula, então pensem nisso ao longo do volume, dado que grande parte do encadernado está dessa forma…

A vinda de “Harukaze no Étranger” para cá está diretamente atrelada ao sucesso e vendagem de “Estranho à Beira-Mar”. Estranho precisa vender bem para compensar a vinda da continuação. Eu sinceramente torço para que venda bem e que venha a continuação, ainda mais que eu não sei nada a respeito da continuação da história. O conteúdo de Estranho à Beira-Mar é o que conheço da série e claro, que com o sucesso de Estranho, mais obras da Kanna cheguem ao Brasil. Ela é uma autora com potencial e gostaria de ler mais coisa dela. Torço pela vinda do artbook dela também. Se o de “Given” será lançado no Brasil, quem sabe no futuro… Vamos torcer!


  • A Edição Nacional

“Estranho à Beira-Mar” foi lançado no formato 12,8 x 18,2 cm. Tem capa cartonada com sobrecapa fosca, no papel Off-set 90g e não tem páginas coloridas. O mangá possui 200 páginas e foi lançado com o preço de R$ 29,90. O título é mais um dos que se juntam ao Selo PRIDE, voltado para obras LGBTQIA+. Abaixo vocês conferem um vídeo mostrando a edição nacional do mangá em maiores detalhes ^^.

Eu particularmente não tenho nada contra sobrecapa, desde que embaixo tenha alguma arte diferente da capa e no caso de “Estranho”, infelizmente não temos nada além do título escrito. Não sei se foi uma imposição do Japão (o que pode acontecer), mas de fato não gosto de ter esse material aqui se ele não me proporciona nada de extra e que mereça ser mostrado. No demais, eu não encontrei nenhum erro de revisão. A leitura é muito boa, fluindo muito bem. Esse volume em específico eu quero dar um destaque para nosso amigo Diógenes Diogo (@Dihstopico) que foi o responsável por fazer essa capa LINDA! Um trabalho fantástico e impecável!!! Ele também foi responsável pela diagramação, junto de sua esposa, a Iara Rivelli. A tradução foi feita pela Erika Yuriko Tanaka e a revisão do texto foi feita pela Débora Tasso e pelo Ivys Danillo.


  • Conclusão

Estranho à Beira-Mar é uma história simples, mas que traz consigo discussões interessantes sobre homofobia, a questão de famílias do interior e casamentos arranjados ou forçados, além da pressão social. Sua história é redondinha, embora possua algumas pontas e falhas ocasionais. Têm personagens ótimos, com pendências e problemas que vão sendo desenvolvidos ao longo do volume, encerrando com uma boa mensagem de recomeço e de apoio mútuo, além de ter uma arte deslumbrante! Recomendo muito a história. O lado bom é ser volume único que se sustenta muito bem e não existindo um exato compromisso em ler a sequência (embora eu espero que gostem ao ponto de pretender adquirir a sequência caso seja lançada aqui). Recomendo a todos, mas em especial, como um BL de porta de entrada para aqueles que nunca tiveram contato com a demografia.


  • Ficha Técnica
  • Título original: Umibe no Étranger (海辺のエトランゼ)
  • Título nacional: Estranho à Beira-Mar
  • Autora: Kii Kanna
  • Serialização no Japão: onBLUE
  • Editora japoensa: Shodensha
  • Editora nacional: NewPOP
  • Quantidade de volumes: Volume único
  • Formato: 12,8 x 18,2 cm, capa cartonada com sobrecapa
  • Quantidade de páginas: 200
  • Papel: Off-set 90g
  • Preço de capa: R$ 29,90
  • Compre em: Amazon/Loja NewPOP

Mio quebrou tabus e expôs os fatos!

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