O casamento é a prisão e a morte do marido é a liberdade.

Era começo de julho de 2022 e a Akata anunciava “Mon mari dort dans le congélateur”, um Josei em 2 volumes com uma proposta intrigante: uma mulher matava seu marido depois sofrer agressões dele durante anos e o colocava no freezer. No entanto, na manhã seguinte, ele aparecia diante dela, vivo, dando início a história. A Akata sempre traz histórias de cunho social boas e bem retratadas. Naturalmente fiquei animado com o mangá. Adquiri os 2 volumes nos seus respectivos meses de lançamento (agosto e outubro) e depois de muito tempo, consegui lê-lo no fim de 2023.

“Mon mari dort dans le congélateur” (私の夫は冷凍庫に眠っている) é um mangá de Hyaku Takara. A obra é a adaptação em mangá de um romance de Misaki Yazuki. O mangá foi publicado no Japão entre 2 de abril de 2020 e 25 de fevereiro de 2021 na revista MangaONE (Shogakukan), sendo completo em 2 volumes. A obra ainda recebeu uma adaptação em série live-action em 6 episódios em 2021.


“Mon mari dort dans le congélateur” conta a história da Nana, que é casada há alguns anos com Ryô. E vez após vez, ela sofre diversos abusos por parte dele como assédio, violência doméstica (física e verbal), além de estupros. Após anos vivendo com ele, chega um ponto que ela não aguenta mais e enquanto acontecia um festival perto da casa deles, ela mata o marido o estrangulando colocando o corpo no congelador. Após a sensação de liberdade, no dia seguinte, porém, ao acordar, ela dá de cara com o Ryô. O que teria acontecido? Foi apenas um sonho? Ela o matou mesmo? Há dois deles? Ou ela teria matado outra pessoa achando que era seu marido? Fato é que alguém está “dormindo” no freezer e começa assim, a história do mangá.

“… Eu matei meu marido.”

Hoje (08/03) é Dia Internacional das Mulheres e embora seja uma data especial para celebrar as conquistas e avanços sociais que as mulheres conquistaram ao longo do século XX, também é preciso lembrar do nosso tempo e da realidade que estamos: precisamos falar também do machismo, do patriarcado, que nutre as relações de dominância em mulheres, misoginia e da violência que as atinge diretamente. Por isso o mangá escolhido para apresentar neste mês é “Meu marido dorme no freezer”. E um acontecimento do ano passado me marcou em especial pelo quão triste e revoltante foi a situação: mais ou menos no final de 2022, apareceu uma notícia de uma mulher que havia matado o marido e posto o corpo no freezer. Muitas vezes, para falar de assuntos da sociedade os autores extrapolam um pouco a realidade e criam situações mais inusitadas que você espera não ver tão iguais na realidade, embora não seja impossível. E quando li a reportagem, foi uma enorme tristeza, pois se tratava do mesmo enredo do mangá e não só isso. A sensação da Claudia Fernandes (a mulher que matou o marido) foi a mesma da Nana após o crime: liberdade.

Quando chegamos nesse ponto de situação e sabendo que essa é a realidade de muitas outras mulheres, que ou vão ser assassinadas pelo (ex)marido ou vão precisar matá-lo para conseguir escapar, sabemos que temos algo muito errado aqui. E nesse caos todo, passamos a acompanhar a Nana. Logo após ela ter matado o marido, ela vai até o festival que estava acontecendo perto da sua casa e consegue se divertir pela primeira vez em muito tempo. Dança, ri e chora (de alívio). No dia seguinte, no entanto, essa sensação de paz e calmaria acabam quando o Ryô aparece vivo diante dos olhos dela.

“Eu não pude deixar de continuar a amá-lo”
– Agora… eu estou livre… livre…

O 1º volume do mangá é excelente, seja no aspecto do suspense, com todo o temor da Nana em não saber o que está acontecendo, muito menos saber quem é que está diante dos olhos dela e o que de fato aconteceu, se não é uma distorção da realidade, se a protagonista está sonhando e principalmente, quem é que está diante dos seus olhos. Mas também é um volume muito bom por mostrar facetas da violência contra a mulher. Vemos toda a trajetória do relacionamento dos dois enquanto a Nana reflete sobre o que está acontecendo, desde o Ryô ter começado sendo alguém muito bom e legal com ela, até o relacionamento deles ir definhando, começando agressões verbais e depois físicas, e que passado algum tempo, ele sempre agia de forma diferente, pedia desculpas, dizia que não aconteceria novamente, etc., mostrando muito do modus operandis de relacionamentos abusivos. Tem momentos verdadeiramente angustiantes ao longo do 1º tomo, seja pela própria violência que a Nana sofre, como também pelo Ryô parecer saber de alguma coisa quanto a ele supostamente estar morto. Ele fica instigando a Nana, o que sempre a deixa em dúvida sobre o que ela fez e faz, com o suspense da obra sendo muito, muito bom!

O volume #1 é excelente, mas por outro lado, o segundo nem tanto. Eu dividiria o volume 2 em três partes: o primeiro 1/3 do volume segue na mesma pegada do primeiro e é ótimo!; o 2/3 é mais arrastado e não muito interessante ao ponto de não ser tão envolvente em relação ao restante da obra; e a última parte do volume 2 é mais complicada. Eu particularmente não desgosto do final, mas entendo quem não gosta, porque ele vai para um caminho bem diferente do que vinha sendo construído até então, causando um belo estranhamento, pois a situação que é mostrada é muito absurda (absurda ao ponto de ser levemente cômico). Da minha parte, eu vou na linha de como dizia Glória Perez: pobre daqueles que não sabem voar. MAS entendo quem não consegue comprar a linha narrativa. Vai muito da maneira como você encara o final, porque realmente, é bem surreal…

– Cale-se
“Foi a partir dali que ele se tornou violento…”

Mas apesar disso, ainda vale a leitura do mangá. Mesmo que você não goste do desfecho, acho que a mensagem e ideia principal da obra é muito válida e bem executada. Obras como essa são muito importantes para elucidar ou trazer para a roda de debates. Por mais que seja “clara” a questão da violência contra mulheres a certa altura, esse tipo de obra é importante para mostrar o que acontece, como ocorre, e nesse caso, o porquê de ter chego nesse ponto. Sempre curto obras apoiadas na realidade, porque mesmo sendo algo produzido do outro lado do mundo, é possível cruzar com a nossa realidade, vide a matéria que linkei mais acima, ou outras obras como “Perfect World” da Rie Aruga, que conseguimos trazer questões de capacitismo e da (falta de) inclusão e acessibilidade para pessoas com deficiência.

Aliás, nessas últimas semanas, várias situações e notícias me fizeram pensar sobre o mangá e tornaram sua escolha para a apresentação ainda mais essencial. Há algum tempo atrás, comentei no Twitter/X do blog que os anúncios de produções de animes de demografia feminina de obras da Kodansha estava em uma quantidade acima do normal e criei uma hipótese do motivo (leiam aqui). Dias depois, uma página de Shounen que não temos contato, deu um QRT comentando o assunto, mas o que me chamou atenção foi o comentário em que ele diz que irá lançar um texto falando, entre outras coisas, do “machismo intrínseco do Japão”, para além de outras situações em que a própria tweet da página já ‘vazava’ machismo. O que quero pontuar aqui é que esse tipo de discurso, que pode vir a ser ou não o caso da página, normalmente cai em um tipo de superioridade moral ou de orientalismo no sentido de querer apontar o dedo para outras sociedades e culturas. Não estou querendo dizer que não há machismo no Japão, que não há misoginia, pelo contrário. Estamos em sociedades capitalistas e em um mundo globalizado. Esses problemas sociais vão se repetir em maior ou menor grau nas sociedades ao redor do mundo, e a própria discrepância de tratamento entre obras de demografia feminina e masculina já demonstra isso muito bem.

“No final das contas, nós não fomos ver a dança do Obon. Sinto que meu corpo está em mil pedaços. Meu marido, que eu estava certa de tê-lo matado, pela enésima vez satisfez seus impulsos sexuais me usando. Então vou esfriá-lo novamente. Eu tive uma excelente ideia… para me vingar como se deve…”

Recentemente, repercutiu um caso de uma brasileira que foi em uma viagem para a Índia junto do seu marido e lá, eles foram atacados. A mulher foi estuprada por sete homens. Um caso terrível, lógico, no entanto, conforme os posts iam engajamento, os comentários eram em suma traziam muito essa questão de superioridade moral. Sim, na Índia há menos leis e questões que protejam as mulheres, é verdade. Mas diante dos nossos dados, também precisamos ter uma noção de que o que está no papel é diferente do que acontece na prática (só ver os informes e as crescentes dos números de violência, mesmo tendo leis para a proteção de mulheres). Eu trago aqui o caso de uma mulher que fez uma denúncia de violência contra o marido e horas depois, ele foi atrás dela e a matou, retirando seus órgãos. Ou mesmo o caso em que uma mulher foi estuprada dentro de uma delegacia.

Antes de querer apontar o dedo para o Japão, Índia ou qualquer país que seja, acho que antes precisamos olhar para a nossa própria realidade: em 2022, o Brasil registrou 74.930 vítimas de estupro, cerca de 205 registros por dia; em 2019, foram registrados 5.372 casos de estupro coletivos no Brasil, 14 casos por dia ou um a cada 100 minutos; segundo o ATLAS da Violência, entre 2020 e 2021 (anos de pandemia), 7.691 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil; um estudo global publicado na revista The Lancet estimou que 27% das mulheres de 15 a 49 anos tenham passado por algum tipo de violência doméstica pelo menos uma vez na vida desde os 15 anos; e sem esquecer da subnotificação dos casos de violência: a 10ª edição do Mapa Nacional da Violência de Gênero (divulgado em 2024) revelou que os casos de subnotificação de violência doméstica e familiar contra mulheres podem chegar a 61%; por fim, uma pesquisa feita em 2023 por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), University of Washington e Universidade Federal de Pelotas (UFPel), revelou que a subnotificação de violência contra as mulheres no Brasil foi de 98,5%, 75,9% e 89,4% para as violências psicológica, física e sexual, respectivamente.

Novamente, não estou querendo dizer que esses casos não aconteçam no Japão ou que sejam poucos, porque não são. Tanto que “Mon mari dort dans le congélateur” está aí para mostrar uma situação, assim como temos várias autoras que denunciam esses problemas sociais em suas obras, como a Akane Torikai, mas acho que vale muito mais utilizarmos essa e outras obras para uma reflexão da sociedade japonesa, porém também para uma crítica à nossa própria sociedade.

– Ryô… Eu estou preocupada com meu exame médico no trabalho… Talvez eu tenha …um câncer…
– Nana… Você tem um seguro de vida?
“Foi a única coisa que ele encontrou para me dizer. Ele é desprovido de qualquer empatia. É um monstro. Um demônio. O diabo em pessoa!”

Enfim, fica a nossa mensagem e recomendação ao mangá. Tentamos discutir o assunto com o máximo de respeito e seriedade. Não é um assunto leve, no entanto, é preciso ser dito não importa quantas vezes seja necessário. No blog, tentamos ao máximo celebrar autoras e, especialmente, a demografia feminina, pois a sua existência é um ato de resistência e de feminismo, de conquista das mulheres!

Fica abaixo o vídeo mostrando a edição francesa em detalhes e a lista de obras (a grande maioria escritas e ilustradas por mulheres) que já fizemos recomendação no blog: