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Diferentes mulheres e diferentes modos de se enxergar e se colocar na sociedade.

No dia 8 de março, para a ocasião do Dia Internacional das Mulheres, nós publicamos um texto de apresentação para “Gene Bride”, mangá Josei da Hitomi Takano. O mangá falava, entre outras coisas, das violências cotidianas que as mulheres estão sujeitas, incluindo assédio, descredibilização no trabalho, e até mesmo a morte. Como uma outra parte do assunto e tentando dar enfoque ao trabalho de mulheres, mas também discutir o assunto em outra frente, hoje falarei de “Enfer et contre toutes” (Inferno e Contra Todas), ou “Jogoku no Girlfriend”, mangá da Akane Torikai, que trabalhará a sororidade entre mulheres que vivem em situações e contextos diferentes entre si.

“Jogoku no Girlfriend” (地獄のガールフレンド) é um mangá Josei escrito e ilustrado pela Akane Torikai. A obra começou a ser publicada em fevereiro de 2014, na edição de março/2014 da revista FEEL YOUNG (Shodensha). O mangá foi concluído em 3 volumes, sendo encerrado janeiro de 2017, na edição de fevereiro/2017. Em 2019, foi exibida uma adaptação em série live-action. A série foi transmitida entre 31 de outubro e 26 de dezembro daquele ano com 10 episódios no total. Em comemoração à série, a Akane Torikai publicou um capítulo curto (19 páginas), disponível apenas em formato digital em abril de 2020. Na França, o mangá foi anunciado pela Akata, a editora que publica os mangás da Akane no país, em julho de 2024, tendo a publicação iniciada em agosto. O mangá foi encerrado no final de fevereiro desse ano.

Capa do capítulo especial do mangá.

Para falar do mangá, estarei usando o volume 1 da edição francesa como base. ^^


O mangá acompanha a história e vida cotidiana de três mulheres: a Kana, uma mulher de 31 anos que trabalha como ilustradora e que é divorciada com um filho pequeno (4 anos) chamado Kaede; aYûri, de 28 anos, que trabalha em um escritório e que evita relações sexuais a todo custo; e a Nao, de 36 anos, que tem uma loja de roupas (que ela mesma desenha) e que tem uma queda fraca por homens, se envolvendo com muitos deles. Por algumas razões, essas três mulheres passarão a viver juntas na casa da Nao, em uma espécie de comuna delas. E embora elas tenham visões e concepções diferentes, é graças ao apoio mútuo que elas encontraram algum meio de seguir adiante nesse mundo tão injusto com as mulheres.

Os primeiros três capítulos do mangá dão um panorama geral sobre cada uma das personagens, sendo cada um focado em uma delas. O 1º deles é sobre a Kana que está tentando manter o filho na mesma escola que ele estuda, já que ele acabou de fazer seu 1º amigo e ela não quer que o filho perca isso. Como ela se mudou para a casa dos pais, as regras de vagas dizem que as escolas são destinadas para as crianças daquele bairro ou região. Ela se mudando, o filho não pode permanecer lá. Na volta dessa conversa com o que parece ser tipo uma assistente social, ela encontra um panfleto de aluguel (super baixo) de uma casa para viver com outras duas mulheres, sendo essa a esperança dela de manter o filho na mesma escola. Esse capítulo trás três coisas interessantes: a 1ª que me soou pertinente é sobre como a Kana se incomoda profundamente de ser chamada de “mãe”, no sentido de ela ser a mãe do Kaede, pois todas as pessoas que ela encontra estando acompanhada do filho a chamam assim, passando a impressão de que ela deixou de ser uma pessoa, um indivíduo, e se tornou algo em função de ser mãe. Ela deixa de ser a Kana e passa a ser apenas uma mãe. A 2ª é que por ela ter casado cedo, ela tinha uma visão um pouco idealizada de que aquele momento marcaria o fim da sensação de solidão, que ela nunca mais iria experenciar aquilo novamente e o que ela viu no passar dos anos foi o completo oposto. E a 3ª está na misoginia e machismo que existe por ela ser mulher e mãe. Quem vai à escola é ela. Quem faz as atividades com o filho é ela. Quem cuida da casa, também é ela. E no entanto, ao pedir ajuda do marido, SE ele poderia sair do trabalho mais cedo e ajudar nas coisas de casa para que ela conseguisse se dedicar mais ao trabalho, ele usou a cartada (clássica) de que ele ganha mais, que ele é o provedor, e portanto não é dever ou função dele.

– Você exagera, Kana… que eu saiba, isso não te impede de trabalhar e viver sua vida… e mais, eu estou aqui para te ajudar.
– “Ajudar”? Eu adoraria a ter um pouco mais de tempo para o meu trabalho… mas eu me encontro tendo que administrar a casa. Você não poderia terminar o trabalho um pouco mais cedo e participar também, Ryôji?
– Reflita dois segundos… quem é a principal fonte de renda desta casa?
– Bem, sim, mas… eu tinha muito mais oportunidades antes de estar grávida! E eu não sabia que eu iria ter tão pouco tempo depois do parto!
– É isso que estou dizendo… se você trouxer tanto dinheiro que eu, eu cuidaria da metade dos afazeres domésticos sem problemas… mas não é o caso, e você ainda quer mais liberdade… Além disso, quando você fala do seu trabalho, você está pensando somente no seu desenvolvimento pessoal, não é? Francamente, é egoísta da sua parte.
– Mamãe! Eu fiz cocô!
* Em si, os argumentos do meu marido eram imparáveis… então, naquele momento, eu não tinha vontade de lutar… e eu pedi o divórcio sem pedir dinheiro ou o qualquer outra coisa. *

O capítulo 2 apresenta a Yûri, que está para ser despejada do local onde mora há 8 anos por causa de uma transferência de hipoteca, o que faz com que todos os inquilinos do imóvel tenham que se mudar em até 6 meses. A Yûri é uma pessoa que tem uma tendência a não querer grandes mudanças na sua vida: não quer causar nenhum tipo de problema para as pessoas, assim como não quer que ninguém a incomode. Ela aplica esse modo de ver as coisas até mesmo no trabalhando, preferindo que ninguém a interrompa sem que haja uma forte necessidade. A Yûri também é muito fechada com relacionamentos, sejam de amizades ou amorosos. Ela não tem muitos amigos, nenhum atualmente, na verdade, e de relacionamento ela só teve 1 com um homem que era casado e sumiu tão logo quanto apareceu. Ao mesmo tempo ela também é uma pessoa que tende a se encantar fácil com a figura de rapazes quando eles soam interessantes, da mesma forma que se decepciona e perde o interesse quando ela vê mais da pessoa (me identifico um pouco com ela nessa parte).

E no 3º capítulo temos a Nao, que como disse, tem sua própria loja de roupas e vive sua vida de forma um pouco leviana. Ela se descreve como uma pessoa que ama roupas bonitas, uma boa comida e garotos lindos, odiando arrumar a casa e lavar roupas e não se importando verdadeiramente com o restante. Ela tinha um ficante, mas ele traiu ela com outra garota. Os outros relacionamentos que teve anteriormente, ela que normalmente terminava, porém essa traição a deixou mal, mas não ao ponto de não querer ficar com outros rapazes que aparecerem no seu caminho (queen) e assim que ela vai levando a vida… Como ela odeia arrumar a casa, achou a solução de alugar a casa por um preço baixo para outras duas mulheres (que no caso, serão a Yûri e a Kana) com a condição de manter ela limpa. Vivendo as três juntas, sem esquecer do Kaede e do amigo da Nao, que vez ou outra vai aparecer por lá, rs.

– Você devia se respeitar um pouco mais, você não acha? Enfim, eu sou sua amiga… então não hesite em me falar quando você precisar.
– OK… desculpe…
– Eu voltarei em breve… ligue-me quando você quiser.
* “Eu voltarei em breve”, depois de falar estas palavras, ele fechou a porta atrás dele e nunca mais voltou… *
* […] são as tarefas domésticas e lavar roupas. Eu quero passar meu tempo fazendo as coisas que amo *
– Ele me perguntou… se nós poderíamos morar juntos
* Eu amei tanto aquele homem… ele era minha fantasia absoluta. Eu queria que ele entrasse… na minha vida suja e desordenada. *
– Nao, você realmente amava o Taisei, hein…

Eu falei mais da Kana porque o capítulo inicial dela consegue transpor todas as dificuldades de uma só vez, mas isso não quer dizer que a Yûri no meio corporativo ou a Nao no seu jeito livre, leve e solto, não tenham suas questões e complexidades. Mas fato é que cada uma dessas mulheres tiveram experiências e vivências diferentes e, apesar disso, todas elas estão sujeitas a pressões da sociedade já que são mulheres. Todas elas estão sujeitas ao machismo e a serem tratadas com desdém, ou abandonadas ou deixadas de lado… Mesmo que elas tenham visões diferentes e não concordem com tudo (porque sim, elas discordam bastante) serão essas diferenças que farão a dinâmica do mangá ser interessantes, isso porque a Akane Torikai se utiliza disso para discutir as experiências delas. Não fazendo apontamentos ou querendo julgar alguma personagem por pensar de forma X, ou mesmo apontar o que seria o certo ou errado, nada disso. Ela apenas quer discutir sobre a vivência da mulher na sociedade e coisas com as quais elas podem experienciar ou vivenciar partindo de concepções diferentes.

Um exemplo claro disso é a maneira com a qual a autora retrata a Nao. Em momento algum na leitura, você sente que ela está sendo julgada ou tratada como “inferior” às demais por ela ser um tanto fútil. Tem uma passagem boa ao longo do volume em que a Yûri e a Kana se perguntam o porquê da Nao nunca estar estressada com nada, no que a Nao responde que é puramente porque ela se ama mais. Ela não perde tempo se importando o que os homens acham dela, ou mesmo o que a sociedade pensa sobre ela e o seu jeito de ser. Ela é o que é e ela se ama daquele jeito. Ao reduzir a importância dos demais, não tem porquê se estressar. O capítulo 11 é um capítulo legal e que a própria Akane Torikai postou no Twitter uma vez, porque é sobre a Nao se dando conta de que não é mais uma menininha e que os homens não estão indo mais atrás dela, ao mesmo tempo que ela se tornou mais cética e criteriosa quanto aos homens que ela sai por causa do convívio com a Kana e a Yûri. E ela decide tentar sair com algum cara mais velho. No encontro, o homem fala que é um empresário, casado, tem filhos e diz que gostaria de ter uma “jovem mulher cativante” com ele, o que a Nao pergunta sobre a educação das crianças. Ele começa a desviar, até ela perguntar sobre a esposa e comenta se ela não seria essa mulher cativante, lembrando do cuidado que a Kana tem com o Kaede. O cara se irrita e chama ela de vadia e é naquele momento que ela percebe o quanto eles são patéticos e corre para voltar para casa e contar para as meninas o que se passou.

– Tudo isso fede… você fede àqueles velhos caindo aos pedaços que acham que podem tudo
– Que… o que você disse? VADIA!
Hahahahahahahaha
– Eu não sabia… que quando eu dizia a verdade… eu me tornava uma vadia aos olhos dos homens. Eu sou estranha… realmente… estranha. Eu quero muito… lhes falar… de lhes contar tudo que se passou nos mínimos detalhes.

Nesse aspecto de visões diferentes, a autora ainda mostra que existe uma possibilidade de aprendizado mútuo e que nenhuma realidade é a forma certa de ver ou viver. Em dado momento da história, a Akane Torikai mostra que a Yûri acha a vida da Kana dura, isso porque ela precisa cuidar do Kaede sozinha, levar na escola, buscar, fazer comida e arrumar a casa, enquanto que a Kana já acha a vida da Yûri mais complicada por causa do trabalho em escritório, ter que acordar super cedo para conseguir chegar no horário e ainda ter que lidar com aquele tanto de gente na orelha dela. A Kana acha que a vida dela está até melhor sozinha do que antes, porque agora ela consegue ter um tempo para ela, tirar cochilos no meio da tarde, coisas que não conseguia ter quando era casada já que o marido era um imprestável. Já a Yûri não consegue conceber ela sendo mãe e cuidando de uma criança. Uma está mais certa que a outra? Não e nem é sobre isso que a Akane Torikai quer nos mostrar e contar. Ela tem um cuidado e uma gentileza grande na maneira como retrata a vida delas, especialmente nesses momentos de diálogos entre elas.

E nessa história toda, ainda temos o Shikatani, o amigo da Nao que vez ou outra aparece na casa para falar alguma bobagem. Ele profere alguns absurdos na maior naturalidade, como o fato dele só se interessar por garotas que sejam virgens, e a autora usa ele parte como alívio cômico, pelo absurdo que ele está sempre falando, parte como um provocativo para alguns dos assuntos que ela quer trabalhar. Eu gosto que a Akane tira ele de trouxa e as meninas não deixam nem um pouco barato para ele também, rs.

– Mas eu queria ficar para dormir
– LIGUE ESTE CARRO E RÁPIDO!!

O mangá conta vários desses pequenos causos do cotidiano dessas personagens. São suas vidas em um almoço, um jantar, algum estresse no trabalho, alguma paixonite, um desejo de transar, ou meramente conversar sobre o que elas sentem. Nenhuma das três tinham muitas amigas com quem pudessem compartilhar o que sentem e até achavam que não precisavam de nada disso. No entanto, a convivência fez com que elas percebessem que é bom ter com quem elas possam contar e mesmo que não tenham soluções. O simples fato de ter alguém para compartilhar seus sentimentos (bons ou ruins), já faz muita diferença!


Já falamos um pouco do trabalho e da carreira da Akane Torikai quando falamos de “Saturn Return” no blog ano passado. Então vou passar por algumas das principais obras da autora ao longo desses anos. ^^

Ela debuta a carreira de mangaka em 2004 na revista Bessatsu Shoujo Friend (Kodansha), passando esses primeiros anos de sua carreira fazendo histórias curtas. Em 2010, na Morning Two (revista Seinen da Kodansha), ela começa sua primeira série: “Ohayou Okaeri“, publicada até 2013 e concluída com 5 volumes. Em 2013 ela tem uma grande virada na carreira, com o lançamento de duas séries (com publicação simultânea): “Onna no Ie”, Josei publicado na BE LOVE (Kodansha) e “Sensei no Shiroi Uso” (publicado na França como “En proie au silence“) na Morning Two (Seinen), ambos concluídos em 8 volumes. Em 2014 ela estreia na FEEL YOUNG com “Jigoku no Girlfriend”. Mais recentemente, destacamos duas obras: “Saturn Return“ (2019-2022), publicado na Big Comic Spirits (Seinen) d Shogakukan. E ano passado ela volta a Kodansha e começa “Bad Baby wa Nakanai“ na revista Morning (Seinen), estando com 2 volumes lançados atualmente e com o 3º previsto para 23 de abril.

Capas de: “Ohayou Okaeri“ #1, “Onna no Ie” #1, capa francesa de “Sensei no Shiroi Uso” #1, capa francesa de “Saturn Return“ #1 e “Bad Baby wa Nakanai #1

Uma coisa que não tinha comentado antes é que em setembro de 2018, a Akane Torikai publicou um livro (lançado pela Chikuma Shobo). Esse livro é um diário que ela escreveu ao longo de alguns meses, em que ela fala sobre os cuidados com seu filho pequeno, os relacionamentos que já teve, a relação com o ex-marido e pai da criança, suas inseguranças, a vida como mangaka e mãe. Vi vários elogios para esse livro e queria muito ler ele. Espero que seja lançado na França em algum momento no futuro. O livro se chama “Manga Mitaina Koi Kudasai“.

Como dito, eu adoro a autora. Os mangás dela tem um Q social forte, frequentemente retratando a sociedade e os seres humanos de uma forma bem crua. É uma pegada um pouco mais diferente, pois ela trabalha bastante com a comédia, mas sem deixar de lado a “cara” dela na obra.

Capa de “Manga Mitaina Koi Kudasai

Enfim, “Enfer et contre toutes” é uma ótima pedida para quem quer ler uma obra com o estilo de trabalhos que discutem o que é “ser mulher” na sociedade atual. Por sinal, nossa amiga do blog Aroma de Mangá escreveu um texto para a ocasião do Mês das Mulheres fazendo uma seleção de obras com essa temática. Recomendo enormemente. ^^

Abaixo, deixamos o vídeo mostrando a edição francesa do mangá e em sequência a lista de obras que já fiz texto de apresentação no blog. ^^

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