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Teki Yatsuda conta a história trágica de pessoas frutos de lares falidos...

Reta final do mês de junho de 2025 e como é Mês do Orgulho, gostaríamos de aproveitar a ocasião para publicar alguns textos especiais para o mês. Infelizmente, não consegui produzir tudo o que eu gostaria, nem ao menos ler tudo o que eu queria, mas pelo menos consegui cumprir meu objetivo inicial que era fazer dois textos de apresentação de obras de demografia feminina que trouxessem personagens/histórias LGBTQIA+ em destaque. O primeiro texto foi o de “Mejirobana no Saku“, um mangá Josei da Asumiko Nakamura (a autora de “Doukyusei“) e que é o primeiro mangá Yuri da autora, explorando o relacionamento entre mulheres em internatos femininos. E o 2º texto é este de agora, “Home Far Away” ou no original, “Haruka Tooki Ie“, da Teki Yatsuda!

“Haruka Tooki Ie” (遥か遠き家) é um mangá escrito e ilustrado pela Teki Yatsuda. A obra foi publicada entre setembro de 2020 e fevereiro de 2021 na revista Canna da editora Printemps Shuppan. Os capítulos da obra foram compilados em um volume único de quase 300 páginas. No Japão, ele foi lançado em março de 2021. No volume 100 da revista Canna, lançado em fevereiro deste ano, a Teki Yatsuda lançou um capítulo extra especial, comemorando a 100ª edição da revista, esse capítulo não está disponível oficialmente em lugar nenhum (a exceção do Japão). A obra foi um grande sucesso, sendo licenciado para diversos países do ocidente como Polônia (Kotori), Alemanha (Carlsen), Espanha (Milky Way Ediciones) e Estados Unidos (KUMA). Na França, o mangá foi anunciado pela Hana Éditions em meados de janeiro de 2023 e publicado em março do mesmo ano. É pela edição da Hana que falaremos da obra agora. ^^


“Home Far Away” se passa nos Estados Unidos, nos anos 1990 e vai contar a história do Alan, um jovem adolescente de 16 para 17 anos que sofre com hipertensão e vive com os pais que são grandes fanáticos religiosos, além de ultra protetores (em especial, a mãe), o forçando a rezar e a pedir perdão pelos pecados durante horas, ou seja, um ambiente sufocante e pouco acolhedor. Em uma noite, o Alan sai de casa e fica enrolando para voltar e é nesse dia que ele conhece o Hayden, um homem de 20 e poucos anos que trabalha em uma loja da cidade. O Hayden não é da cidade, mas estará por lá durante um período e nisso, os dois acabam se aproximando…

– Não renuncie a ser você mesmo, ok? Como você se chama?
-Alan Saverio.
Eu sou Hayden Stewart.

Ambos são frutos de famílias que, de formas muito diferentes, ruíram. Não só ruíram, como levaram os dois a ruína também. O Hayden cresceu em um lar em que a mãe sofria com a violência do marido (pai dele) até o momento que ela decide por matá-lo para se livrar daquele sofrimento. No entanto, a culpa por aquele ato foi tamanha, que ela não conseguiu esquecer, se afundando em álcool e outras drogas, até o momento em que morreu por uma overdose. Antes dessa morte e durante do afogamento nas drogas, ele, enquanto criança, não conseguia compreender a totalidade das ações de sua mãe, desejando fugir e esquecer de tudo aquilo. Daí sua necessidade em não permanecer muito tempo no mesmo lugar/cidade, sempre tentando fugir dessas amarras do passado que, a certa altura, ele finge que esqueceu, quando na verdade, segue atado naquele mesmo ponto.

Naquele mesmo dia do primeiro encontro dos dois, o Alan retorna para casa e precisa lidar com o surto dos pais, tanto numa questão de preocupação exacerbada, mas também por um lado de frustração, pois apesar da preocupação dos pais, eles nunca fazem nada por ele. Eles falam de preocupação, mas a ação deles é de apenas rezar e esperar que Deus atue para que traga o filho de volta para casa. Estão sempre a espera de algum milagre, presos em um único ponto, o que é de desagrado do Alan, já que ele não sente essa preocupação e cuidado real.

* De novo… eu, que havia conseguido parar o sangramento… meu sangue continua a fluir. Eu estou cansado… *
– Deixe-o pelo menos por hoje, ele está sangrando…
– Cale a boca! Se ele sangra, é porque Deus quis punir ele!

É durante o processo de aproximação dos dois que o Alan confia ao Hayden algumas informações de seu passado: quando era criança, o Alan foi abusado pelo antigo padre da igreja da cidade e por causa disso, carrega consigo uma culpa que o corrói há muitos anos, sem poder confiar esse assunto a ninguém, principalmente para a sua família, já que graças ao fanatismo religioso, o que o Alan nutri dentro de si é que a culpa é dele. E é também disso que o Alan se frustra pela sua relação familiar. Quando ele precisa da sua família, não é como eles fossem lá ajudar, e esperam por uma ação divina para que se resolva o problema.

Fato é que o Alan cria um apego com o Hayden, já que sendo os dois frutos de famílias tão disfuncionais e problemáticas, um vai ver no outro, um lugar comum, de comunhão e entendimento mútuo. Porém, o Hayden não possui e não quer ter apego a lugares e dessa forma, logo chegará o momento de partir daquele lugar. Embora ele queira ir, o Hayden também não quer deixar o Alan para trás e dessa forma, o chama para que saiam dali juntos, o que o Alan aceita e é partir desse ponto que a narrativa vai começar de fato.

Até o capítulo 2, que foi o que comentei até aqui, a Teki Yatsuda estabelece a base do cenário e das vivências dos personagens, explicitando o quão quebradas são suas famílias e como os afetou e afeta até o momento do encontro. Falar de um volume único, por vezes, é uma coisa complicada, pois são histórias curtas e é preciso tomar cuidado para não entrar na história e acabar estragando a surpresa da leitura, ainda mais no caso dessa nossa coluna que tem como ideia apenas apresentar a narrativa das obras que comentamos. Dos 32 textos de apresentação que já fiz no blog (lista completa ao fim da postagem), apenas uma obra era volume único (e que ganhou continuação), sendo as demais, todas, no mínimo séries (2-3 volumes).

Para tanto, entrarei em alguns aspectos mais gerais da narrativa, como por exemplo, apesar de ser uma história essencialmente sobre o Alan e o Hayden, gosto de como a Teki estabelece algumas histórias paralelas que vão se entrelaçar com esses dois, e todas elas, de pessoas que também ruíram ou causaram a ruína de alguém. A certa altura da obra, depois da partida dos dois, conheceremos uma prostituta chamada Maria, que vai ter um encontro proveitoso com o Alan. A história dela, e dos demais personagens, é essencialmente triste. São todas histórias de pessoas que sofreram alguma dor, perda ou agressão social e a partir disso, se veem abandonadas e sem rumo de onde seguir, levando essas pessoas a trilhar caminhos bem… tortos, por assim dizer.

Por mais que o Alan e o Hayden tenham encontrado um no outro um local de conforto, o Alan ainda tem muitas amarras ligadas à religião, pois embora sinta raiva de tudo que a envolve pela maneira como os pais lidam com a religiosidade e ele, para além do estupro sofrido na infância, aquilo é o que ele conhece, e não consegue desapegar da figura de Deus e das igrejas, sempre aguardando pela sua própria salvação, o que é um contraponto grande com a figura do Hayden e a maneira que enxerga a religião. O Hayden é totalmente desapegado e ateu (provavelmente, não é dito propriamente na obra), o que vai gerar um ponto de conflito em certo momento.

Essa espera por uma salvação ou a maneira pela qual as pessoas se agarram em símbolos e os usam como um sinal de Deus criando um fanatismo, vai gerar uma situação completamente irreversível para os personagens.

– Sim… vamos… Hayden.

Por fim, outro personagem que entra em cena é um policial que conhece o Hayden de quando ele era menor de idade, conhecendo bem a história do personagem. A autora usa a figura da polícia em duas frentes: a punitivista, que está lá sempre naquele pensamento de “bandido bom é bandido morto”, mas também aquela que deveria estar lá como prestação de serviço e que deveria estar lá para ajudar as pessoas. E, nesse contexto, esse policial sente muito pelo rumo que o Hayden levou tendo conhecimento de sua história e age na esperança de finalmente poder fazer alguma coisa por ele.

A família do Alan também volta a entrar em cena e é bacana como ela coloca a figura da família várias vezes como aquela que pode salvar uma pessoa, ao oferecer apoio e suporte, e em muitos casos, é tudo que uma pessoa precisa para se sentir em paz, ter aquela palavra de que está ou vai ficar tudo bem. Infelizmente, não só nesta história como em diversos casos da vida real, a família está mais preocupada em apontar o dedo no primeiro momento do que oferecer um conforto, sendo em muitos casos, a última gota que para que ocorra alguma tragédia.

– Obrigado… por me trazer até aqui

Essa é uma história essencialmente trágica e é doloroso ver as coisas ruindo no decorrer dela, mas também é uma ótima sensação no sentido de que a Teki Yatsuda conta essa história de forma tão vívida e empolgante, sendo como estar em uma montanha-russa de tantas emoções que passa.


Falando um pouco da Teki, ela nasceu em 27 de março e do que se tem registro, a primeira obra dela foi justamente “Haruka Tooki Ie”, lançado entre 2020 e 2021 na revista Canna e só aqui, já dá para ver que ela começou a carreira muitíssimo bem! Ainda em 2021, ela estreia “Yakuza no Oshigoto“, Josei publicado na revista Comic Pool (Ichijinsha). A obra conta com 2 volumes lançados (o 2º saiu em julho de 2022) e está em hiatus há mais de 1 ano, e esse é uma comédia sobre um Yakuza que é ~encantado~ com um Idol. Em 2023, ela volta para a Canna e lança “Kami no Fune de Nemuru“, este concluído ainda em 2023 com 2 volumes. Ele é sobre um escritor desiludido que encontra uma nova inspiração na figura de um homem que o salva quando estava bêbado. Por fim, agora em 2025, a autora fez sua estreia em revista Seinen com “Myther“, publicado na revista Getsumanga Kichi, da editora Kodansha. O volume #1 da obra foi lançado agora no fim de junho no Japão. Esse é um mangá sobre um futuro distópico em que a violência aumenta em decorrência da tecnologia.

Capas japonesas dos dois volumes de “Yakuza no Oshigoto“, dos dois volumes de “Kami no Fune de Nemuru” e do primeiro de “Myther“.

A Teki Yatsuda tem um estilo de arte que é deslumbrante. Ela traz uma riqueza de detalhes impressionantes nos seus desenhos, que trazem a impressão de se assemelhar a pessoas reais. Faz composições e enquadramentos bonitos, isso sem falar na arte colorida dela que é um espetáculo a parte!

Lendo “Haruka Tooki Ie”, inclusive, acho que daria um filme live-action genuinamente impressionante se bem filmado e atuado. Ele tem esse ar de tragédia e história épica que combinam com a linguagem cinematográfica.

* É tudo que eu preciso. Se nosso mundo está aqui, então estou realizado. Eu poderia, assim, me jogar… no mar.

Para “Home Far Away”, é isso! Como eu disse, não quero entrar nos detalhes da narrativa, já que se fosse assim, não traria graça na leitura e na descoberta do que a história tem a contar. Em todo caso, espero que o pouco que trouxe aqui tenha instigado curiosidade com o mangá. Leiam, porque vale a pena e só cuidado com os gatilhos com a temática de abuso sexual.

Comentamos duas obras LGBTQIA+ no blog neste Mês do Orgulho de 2025 e, embora quisesse ter feito mais, foi o que deu para entregar. Espero que tenham gostado e nos vemos no próximo mês para outro(s) texto(s) de apresentação! Abaixo, como sempre, tem um vídeo mostrando a edição francesa e logo em sequência, os links dos textos das demais obras que já comentei e recomendei aqui no blog. ^^

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